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Realidade, experiência, criação


Reflexão filosófica sobre criatividade, experiência, cultura e educação,
partindo da formulação dos pensadores gregos à perspectiva existencial.
Destaca na educação tradicional a primazia do logos e
na educação contemporânea a da técnica, prenunciando
para a educação do futuro a integração dialética
entre logos, técnica e eros.


          O tema criatividade é próprio para com ele se proceder a uma porção de desmistificações. Por exemplo: qual é o valor real da tradição, da autoridade, da norma externa, da sociedade, do "nomos", enfim? Qual a significação de ensinar e de aprender, de educar e de educar-se, da alteridade e da autonomia? O que caracteriza a nossa época, do ponto de vista histórico, é exatamente a necessidade de rever essas instâncias. Não que o valor e a forma a elas atribuídas no passado constituíssem mistificação, pois, ao contrário, durante longo período da história esse valor e essa forma desempenharam uma função necessária. A sua perduração é que representa uma impostura, agora que a criatividade foi finalmente erigida em instância maior da cultura e da sociedade.

 

 Sócrates, criação livre?

           A nossa época adquiriu a consciência de que a cultura e o próprio homem têm que ser re-inventados, enquanto outras épocas acreditaram que devia ser conservada a cultura, e descoberta - ou redescoberta - a imagem do homem segundo a qual ela foi criada. Sócrates inventou a Razão, como já se disse, mas apenas para descobrir, dentro dela, uma essência eterna, que o seu discípulo Platão veio a consubstanciar, depois, nos Arquétipos. Razão para conhecer-se - "conhece-te a ti mesmo" - e, no fundo de si mesmo, sob a forma de reminiscência, o rastro das Idéias. Para Platão, por isso mesmo, aprender era recordar: não o legado do homem, mas a pegada das Essências. O seu mestre, Sócrates, por mais que lhe devam a cultura e a educação, foi menos libertador do homem do que pode à primeira vista parecer: a sua "maiêutica" representou muito mais o método de assimilação que de criação livre. Se era verdade que, no método socrático, nada era apreendido sem a adesão livre do discípulo, também era verdade que se elaborava, através dele, muito mais que a criação de novas verdades do homem, a adesão à verdade do mestre, como instância intermediária entre a razão individual do aluno e a Razão universal. A razão socrática abre o caminho para o Absoluto, mas não para a história; ela soube ir do contingente ao transcendente, do concreto ao abstrato, do particular ao geral, do homem aos arquétipos, mas não conseguiu compreender que o absoluto se encarna na história, e que os indivíduos, como seres particulares, não se opõem ao absoluto, mas representam as suas multiplicadas aparições ao longo do tempo. Sócrates libertou o educando da autoridade do educador, mas não dos valores que o educador representa.

          A grandeza do mestre estaria 1º) em purificar-se para poder contemplar as idéias (nisso consistia a dialética de Platão), e 2º) em criar um método que permitisse aos discípulos seguir o mesmo itinerário.

          Os equívocos de Sócrates se devem às limitações inevitáveis da perspectiva de sua época. Antes de tudo, o mestre não chega, jamais, a ser a transparência dos valores que o transcendem, e ao aluno, como objetivo de ambos na educação. A purificação do indivíduo, alçando-se ao absoluto por cima da sociedade e da cultura, constitui uma ilusão que a filosofia e a psicologia moderna desbarataram.

          Em segundo lugar, o absoluto não existe só fora de nós, nós o construímos. Por isso, poderíamos dizer que Sócrates representou uma vertente da cultura humana, e que nós estamos criando a outra. Ele descobriu o homem - nós estamos tentando inventá-lo. Este seria o significado mais profundo, por exemplo, do existencialismo.

 

A Arte : busca do absoluto no particular

           Redescobrimos o particular, o concreto, o corpo, o indivíduo. A arte é a busca do absoluto no particular, e mais: ela é a busca do absoluto no indivíduo e não na esfera do universal em que ele se perde. Sócrates criou o Si-mesmo e libertou o homem da autoridade que emerge da própria razão. Mas o Si-mesmo do filósofo grego era apenas o espelho em que as Idéias se miravam. Para Sócrates, o Si-mesmo era o Universal que vinha habitar o homem, para nós ele é o particular que vai enriquecer a história. A liberdade que Sócrates criou tinha um nome: Razão. A nossa se chama criatividade, que não é só fruto da ra zão (como instância da universalidade), mas também da Existência assumida pelo indivíduo como aventura de sua consciência interrogativa. Para ele, a Razão era a força necessitante por excelência. Entretanto, Freud descobre o Eros, os filósofos modernos descobrem a Existência - isto que está contundentemente aí, o Daisen de Heidegger, a vida toda se abre em possibilidades que não são só as da liberdade, ancorada na Razão, como também as da Existência, como intencionalidade e como originalidade radical. O indivíduo é, em certo sentido, o absoluto.

          Se nós lhe dermos a solidão, o indivíduo redescobrirá a sociedade. Se lhe assegurarmos liberdade, o Si-mesmo descobre a transcendência dentro de sua própria obra. Se o deixarmos fazer, ele faz o ser. Se lhe concedermos o lazer, ele realiza o trabalho que muda a qualidade da vida. Se lhe dermos a autonomia, ele reinventa o mundo. Por tudo isso, o imaginário da criança - a ser preservado na idade adulta - constitui a única fonte de renovação possível. Alfred Marschall - economista inglês do fim do século passado - com muito mais juízo que muitos dos economistas modernos, afirmava, sabiamente, que "uma educação geral é preciosa, mesmo se não tem aplicação direta, porque ela torna o indivíduo mais inteligente, mais preparado, mais seguro no seu trabalho corrente; eleva a qualidade de vida, durante e fora de suas horas de trabalho, contribuindo, de maneira importante, para a produção de riquezas materiais"; "postas à parte a faculdade de percepção e de criação artística - acrescentava ele - pode-se dizer que o que torna os trabalhadores de uma cidade ou de um país mas eficientes que outros, é sobretudo um nível superior de inteligência geral e de energia, já que não são especializados, numa função, qualquer que ela seja".

  

Logos, Tecné, Eros

           Muitos economistas modernos - embora não os mais lúcidos - só se preocupam com a educação técnica, oposta à educação geral ou preponderante em relação a ela. Ora, a verdadeira significação da Técnica, surgindo, prospectivamente, da cultura moderna, consiste em converter todo o fazer em agir, mediante uma práxis integradora do espírito e da matéria. Se a técnica é o domínio do fazer, este, por sua vez, representa o ponto de encontro entre a matéria e o espírito, o ser e o mundo. Por ele - o fazer - é que as coisas vêm a nós, devidamente apropriadas pela nossa práxis, e são depois devolvidas ao mundo externo com o selo de nossa criatividade. Nós só sabemos o que fazemos, e não fazemos senão o que sabemos. O fazer é a experiência que retorna da percepção e se materializa na criação. Percepção, concretização (isto é, redução do universo ao individual), linguagem, eis o périplo realizado pelo processo criativo na arte e na educação. Graças a ele, arte e educação, como processos, se tornam conceitos coextensivos. Não existe arte na educação: existe arte-educação, a educação como consciência artesanal, como opus, como identificação do homo sapiens com o homo faber, do logos com a tecné. Enquanto a educação tradicional se caracterizava como obra do logos, e a mais recente se assinala como obra da tecné, prenuncia-se a do futuro como integração dialética do Logos, da Tecné e do Eros, este último reconciliando entre si os dois primeiros, e indo além deles, como busca do humano como criação, que não obedece aos a priori do logos, nem à mera funcionalidade da tecné.

  

Nível experiencial

           Dentro desse quadro, é extremamente importante a função da experiência. O nosso fazer tem sempre o nível da nossa experiência, seja ela qual for. Como o ser é a existência que se assume, a nossa práxis é a nossa criação. Isso, tanto no plano imaginário como no plano real, na medida em que os dois são um só. Através do fazer, a nossa existência se assume, antes de mais nada, pela imaginação: o Homo Faber é o único em que o ser e o fazer se confundem, imediatamente, com e pelo imaginário. Qualquer pessoa se movimenta num universo construído pelas suas imagens e, enquanto alimentado por estas, num espaço de criatividade. É sempre nova a imagem, originariamente, isto é, no momento em que ela está rente, sem qualquer intermediário, com a percepção, e entregue ao dinamismo desta. A imagem capta e ao mesmo tempo escamoteia o real; assimila-o e "falsifica-o". A arte é uma falsificação na medida em que ela não reporta os seres como são na natureza, mas como os faz o nosso imaginário que é, por isso mesmo, o homem acrescentado à natureza e, em certa medida, à própria cultura. Quando Fernando Pessoa julgava o poeta um mentiroso, e procurava "mentir" a si mesmo usando diferentes pseudônimos, em diferentes obras, ele sabia que cada um desses pseudo, desses falsos, era a verdade de uma fantasia múltipla e incansável. Quando Oscar Wilde dizia que a natureza imita a arte, mostrava a raiz deste processo pelo qual a natureza vista é a natureza na qual estamos nós próprios - seus contempladores - investidos como seus criadores. Nós somos criadores do que vemos. Daí nasce a ambigüidade dialética da cultura, e os seus movimentos contraditórios, de descobrir e ultrapassar. A cultura é um sistema de significações repassadas de tal ambivalência. Nós significamos o mundo que nos significa.

  

O mundo e o mito

           Os mitos têm de comum a superfetação. A realidade é traída pela cultura, da mesma forma que na cultura a realidade se traduz. A consciência dos fatos é imediatamente a superfetação dos fatos. A consciência aperceptiva engendra, na própria percepção, o processo gerador do mito. Toda obra de arte representa a reconquista da realidade fora dela, por assim dizer, no espaço da liberdade e da invenção que é a contribuição do artista à elaboração da própria realidade. Informa-a uma dupla intenção: a de descobrir e a de transcender; a de refletir fatos e a de projetar arquétipos; a de ser, ao mesmo tempo, reflexa e tensional. O mito e o mundo de certa forma se confundem, em conseqüência do caráter ao mesmo tempo intencional e interrogativo da consciência, simultaneamente reveladora escamoteadora da realidade.

          Usando uma imagem de Sartre, a consciência é uma "pente glissante", pela qual ela corre, imantada, para o En-soi; o En-soi é o Néant do Pour-soi. "O cogito conduz necessariamente fora de si; se a consciência é um declive escorregadio sobre o qual não é possível instalar-se sem logo se achar inclinado para fora, sobre o ser-em-si, é que ela não tem nenhuma suficiência de ser como subjetividade absoluta, ela reencaminha, de saída, à coisa". Mas, por outro lado, a realidade do Pour-soi é a neantização do ser, "e o Pour-soi aparece com uma miúda neantização que toma a sua origem no seio do ser; e basta essa neantização para que um bouleversement total aconteça no En-soi. Esse bouleversement é o mundo."

          Entretanto, a nossa concepção diverge da de Sartre. Ao bouleversement (o mundo), eu preferiria o mito (realidade e cultura ) e a temporalidade (ser e tempo), com outra óptica. Voltaremos à análise da temporalidade.

  

Liberdade de olhar

           Depois de tudo isso, temos de reconhecer que a pedagogia é, antes de tudo, liberdade de olhar. Deixar ver, deixar expressar-se, consentir no tateamento, na busca fora dos trilhos dogmáticos, reconhecer-se cada um, enfeudado numa visão a longo termo viciada, que precisa libertar-se pelo contato com outras visões, especialmente as mais virgens, que são as mais jovens. Precisamos revolver a didática, substituindo o método que institucionaliza a indução professor-aluno pelo método que promove o encontro dos dois no espaço da consciência interrogativa. Veremos que a interrogação é freqüentemente vigorosa nos jovens porque sobre eles não se acumulou ainda a poeira das capitulações; o jovem é bravamente fiel ao universo que ele cria. Para reflorescer a árvore da civilização, só a enxertia das suas inquirições cheias de radicalidade e originalidade na velha cepa ameaçada de apodrecer. Veremos que temos tanto de aprender com a pergunta das crianças e dos jovens, quanto eles, com as nossas respostas. Terminamos nós próprios perguntando mais que respondendo, e isto é a vitória final da juventude, de sua audaciosa ignorância, expressão apenas de sua procura confiante e enérgica do futuro. É isso o que quer dizer Margaret Mead, no seu livro sobre a geração jovem em nossos dias, ao declarar que, ao contrário do que a caracterizava noutros padrões de sociedade, ela está destinada a ensinar e conduzir as velhas gerações.

          E a imaginação? Quando apenas reproduz, ela é, basicamente, memória. O que acrescenta a esta, em tal caso, é a subjetividade que a colore, que a singulariza, fazendo da própria imagem lembrada uma criação nova, segundo o dinamismo que acabamos de assinalar. Imaginação, na raiz, é o que eu coloco de mim nas coisas e nas pessoas, no momento - e na medida - em que eu as assumi pela experiência.

          As coisas são apropriadas criadoramente pela percepção. Depois, como tivemos a oportunidade de lembrar, elas são devolvidas ao mundo externo, modificado pelo nosso filtro. Acontece que esse filtro é constituído de percepção e de ação, a primeira completada pela segunda. Um exemplo do poder modificador da percepção pode ser extraído da aprendizagem de língua estrangeira. No laboratório de sons, percebemos o som emitido, e o repetimos. As repetições são inicialmente defeituosas, mas vão-se aperfeiçoando até a repetição limpa e exata. Por que gravamos nossa voz, repetindo o som que ouvimos? Porque só o falar dá eficácia ao ouvir. Toda experiência é decisiva quando é assumida pelo corpo segundo um processo operatório.

  

Conceito de criatividade

           Resumindo, podemos dizer que a educação é, filosófica e sociologicamente, criatividade, e que esta é um processo no qual estão envolvidos fundamentalmente os seguintes conceitos: a) o da existência assumida; b) o da imaginação como força pela qual a existência assume os objetos, assumindo-se a si mesma, modificando-os e modificando-se; c) o do nível experiencial, como a linha de integração entre o exterior e o interior, o objetivo e o subjetivo, o ser e o fazer; d) o do fazer, como um artesanato da consciência aperceptiva e operatória; e) o da dialética entre o agir e o fazer. O agir, na filosofia tradicional, era o fazer, na ordem dos valores, e o fazer, o agir na ordem da matéria. Ora, segundo a fórmula há pouco enunciada, o fazer e o agir se fundem, de modo que os valores saem das mãos do homo faber tanto quanto entram no espírito do homo sapiens. O ser é o fazer; f) finalmente, existência assumida é liberdade. Está associada a essa liberdade a confiança, por vezes uma confiança trágica. Depois que o aprovado, o estabelecido, o tradicional, trouxeram a estabilidade e a segurança por décadas ou séculos, elaborar uma nova imagem do homem e sobre ela construir novas esperanças constitui um ato de coragem. É esse ato de coragem singela e trágica que pratica qualquer artista, e como ele, todo criador autêntico.

  

A criança vê deformidades

           A professorinha que tem medo dos elefantes ou das flores inventadas pela criança, porque destroem as suas harmonias, tem medo das imagens novas que estão surgindo no único celeiro de criação - que é o imaginário, acionado pela ação. A professorinha que desenha primeiro, para a criança desenhar depois, segundo o seu risco - seja para reproduzi-lo, seja para colori-lo - é uma autêntica representante da sociedade, que só sabe trabalhar com o estabelecido, o que já aprovou, o que assegurou estabilidade. O medo às garatujas da criança não é só o medo ao feio - embora também o seja - é o medo ao novo: é a crença inconsciente de que o feio de agora poderá ser o belo de amanhã; e também que as formas tortas saídas da mão da criança poderão exprimir, amanhã, a recusa ao "certo" de hoje; mas também, algumas vezes, o medo de que as deformações sob o lápis da criança sejam as que existem na realidade, escondidas nas formas "perfeitas" de uma arte escamoteadora. A criança vê fraturas, deformidades, aleijões, que existem, de fato, e que os bem-pensantes procuram dissimular. E, outras vezes, essas fraturas representam a sua rebeldia contra os linearismos com que se exprime o estabelecido muito limado e polido pelo "senso comum", que é como os bem-pensantes chamam o lugar comum.

  

Os criadores não têm medo

           Quando Picasso resolve fazer um rosto com dois rostos superpostos, ele não infringe só os cânones da arte acomodada: ele agride os restos de hipocrisia da sociedade vitoriana que, mesmo quando já tinha deixado de ser bela, ou feliz, não teve coragem de renunciar à aparência de que ainda o era. Esse inconformismo de um pintor exige tanta coragem quanto a do estadista que muda os rumos da história.

          Pode parecer que exagero. A coragem do estadista ou do guerreiro seria maior que a do pintor com o seu inofensivo exército de pincéis. Sim, e não. Sim, porque os riscos aparentes do artista são menores: alguns têm ido parar na guilhotina ou na cadeia, é verdade, mas a maioria apenas irrita os conformistas, sendo que muitos os divertem. Um fenômeno de nossos tempos (que aparentemente repete outros, como o da Grécia do século V ou a Renascença) é que o artista, freqüentemente, se tornou parte e é cúmplice da alta sociedade, exatamente a camada mais densa do conformismo social. Para não ter de sofrer os artistas, a sociedade os incorpora - mas tem o cuidado de, antes, etiquetá-los devidamente. Só porque são artistas, eles podem transformar a imagem do homem e do mundo. Com esse carimbo adquirem o privilégio da imunidade, mas a própria sociedade se imuniza do contágio da criatividade. O emblema sorridente, colocado no peito dos artistas, na verdade arde como um estigma de uma chaga. A sociedade condecora os criadores para que a deixem em paz.

          Pode ser simpático a muita gente, inclusive artistas, que se atribua a estes o privilégio da criatividade. Mas a verdade é que a criatividade não é especialização, mas a condição do homem. Os regimes totalitários promovem com perfeita eficiência essa especialização: ficham os seus artistas, escritores e intelectuais, separam-nos numa colônia ou numa associação de escritores, e passam em volta dessas organizações, amavelmente, uma barreira de arame farpado. A associação e a colônia constituem, ao mesmo tempo, a caracterização da condição do artista e o limite de sua liberdade. A criatividade, ao contrário de tudo isso, precisa ser resguardada em todos os níveis e modalidades da educação.

          Abaixo a formação profissional, que opera, por exemplo, com as "séries metódicas" - como as adotadas antigamente no SENAI - pelas quais os adolescentes e jovens se tornavam escravos do projeto de seus patrões e, liminarmente, demitidos de seus próprios projetos. Abaixo a visão estereotipada de Deus, do Estado, do homem, da sociedade - e de todo o trivial em que nós gastamos esses valores supremos. Abaixo os caligrafistas, os puristas, os burocratas.

          E bem haja as imperfeições que reconstroem a imagem do mundo. As pontes tortas desenhadas pelas crianças de 4 a 5 anos - pontes que, entre uma margem e outra, tem a flexão do sonho; sabe-se lá que arquitetos elas darão!

  

Pedagogia: arte do re-começo

           A nossa pedagogia deve ter a coragem de ser a arte do re-começo. Pedagogia da dúvida em relação ao constituído, da esperança em relação ao que se está constituindo. De companheirismo entre mestres e discípulos, irmanados por essa dúvida de modéstia e de sabedoria. Ela deve incentivar a solidão, a experiência, a coragem e a autenticidade. Esta palavra de que se usou, durante tanto tempo, com uma freqüência epidêmica, essa palavra, autenticidade, significa existência assumida, para voltarmos, mais uma vez, a essa expressão.

          Precisamos instaurar a pedagogia do projeto, o qual não se situa apenas na escola, mas em todos os engajamentos de nossa práxis. Abaixo a hegemonia da escola na educação. Somos a favor de uma paideia secretada da própria politheia e por esta articulada.

          A cultura antiga achava que a sociedade deveria ser conservada, 1º) porque julgava que suas raízes eram eternas (Deus ou um Princípio semelhante - como as Idéias de Platão - representado pelo Príncipe, na ordem política, ou pela legalidade interna das coisas, na ordem cósmica), 2º) porque a cultura, tal como estava constituída, representava para os que eram seus detentores exclusivos - as classes dominantes - a base dos privilégios em que se firmava essa dominação, e a própria justificação deles; repasto de que eram os únicos usufrutuários e instrumento de racionalização.

          Hoje, certo tipo de ignorância deliberada e audaciosa substitui a dependência erudita. Fenômeno que só se tornou possível no momento histórico em que se arruinou no indivíduo a adesão aos valores constitutivos da sociedade. Nesse "corte epistemológico" (para usar a expressão de Bachelard) vem a florescer a fé na criança como o mais descomprometido dos seres do universo histórico - e, por isso mesmo, o mais apto a inventar um outro.

  

Ignorância criadora

           Parece-nos, em certa medida, que os criadores ignoram o En-Soi (o Ser), interessando-se, sobretudo, pelo Pour-Soi a Consciência). Entretanto, na filosofia sartreana, brota a consciência como poder neantizante do En-Soi. Être ce qu'on n'est pas et n'être ce qu'on est. A temporalidade significa projection de soi en evant de soi. Para Valery, o homem é o creux toujours future.

          Há outro saber da "ignorância" criadora, um saber contra ab alio, no registro nietzschiano. Em vez de saber, o homem inventa a vida.

          A criatividade assinala a analogia, embora remota, entre o niilismo (Nietzsche) e a neantização (Sartre), mas inclui dois momentos diferentes da perspectiva existencial.

          Nós séculos XVIII e XIX, a ignorância era a única coisa que não se perdoava ao indivíduo civilizado. Era extremamente importante saber tudo o que os outros tinham feito e pensado, e quase nada sobre o que cada um seria capaz de pensar e fazer a despeito dos outros. Atualmente, superada a obsessão erudita, e tida por arcaica a atitude que a gerou, nós vivemos uma época de ignorância criadora.

          No campo da educação, Dewey compreendeu o valor positivo da imaturidade. Ela não representa só ausência de acabamento (ilusório) - daquilo que, em termos relativos, é próprio do adulto - como sobretudo a possibilidade de chegar a acabamentos diferentes e talvez melhores que os atuais. Rejeitam deliberadamente o En-soi, para afirmar o Pour-soi. Esse triunfo do Si-mesmo se chama criatividade.

          Todo o problema é o de saber como se faz a cultura de um homem. De quanto ele precisa de si mesmo, dos outros e da norma que porventura transcenda a ambos. Várias ideologias coexistem com a predominância eventual de uma ou de outra, segundo o momento histórico, que sustentam a prioridade de cada uma dessas instâncias. Prioridade da sociedade - Marx e Durkheim; ou do Si-mesmo - Freud, de um lado, e os existencialistas de outro; da Norma transcendente, Deus ou qualquer dos mitos que o mascaram: a Razão, o Poder, a Nação, a Raça - como foi o caso do nazismo. Muitos são os que hoje tentam uma síntese dialética entre o Eu, a sociedade e o Nomos. A grande significação da arte na educação consiste, a meu ver, em fixar, de modo concreto, o valor do indivíduo como fonte primária de criatividade.

          Pode parecer contraditória essa observação, tendo em vista o caráter notoriamente societarista de nossa época. Onde o valor do indivíduo numa sociedade na qual ele está esmagado pela burocracia, pelo Estado, pela massa? Antes de mais nada, não há necessariamente oposição entre o processo societário e o processo criativo que tem no indivíduo a sua fonte, como podemos ver no exemplo histórico da polis ateniense no século V a.C. Quase todas as grandes filosofias sociais, de resto, procuraram essa conciliação. Há contradição, sim, entre um estilo societário estabelecido de uma vez por todas e apoiado exclusivamente na autoridade das gerações adultas. A isso é que se chama, depreciativamente, o Establishment. E a prova de que não se comete contradição ao se sugerir que a nossa época se caracteriza pela irrupção do indivíduo como fonte de criatividade - contra todo o aparato coletivista e totalitário que, no entanto, constitui sua aparência mais ostentosa - é notar que a grande luta que enfrentam hoje todas as regiões do mundo é contra o Establishment. O que se pretende é dar chance à consciência original que só pode surgir do corte do continuum social, produzida pelo indivíduo e pela força aperceptiva das novas gerações. Acho significativo o caso do Brasil. A nossa cultura tem-se desenvolvido sobretudo nas artes, onde os jovens, desaparelhados da formação científica consistente, são impulsionados mais por forças vitais que intelectuais. Como as gerações adultas se alienaram na cultura intelectual, em vez de a transformarem num meio de criação e de desenvolvimento, os jovens arrebataram-lhes a liderança graças ao vigor de sua imaturidade descobridora.

  

Os artistas e os "hippies"

           A ruptura com o Establishment, considerado como sufocação do novo e do original, do descomprometido e do gratuito, corresponde à ascensão da juventude ao protagonismo da sociedade, e vem sendo dramatizado pela rebelião dos hippies. O hippie, me parece, é o jovem que, não tendo tido a chance de criar nada, tudo deseja destruir no Establishment - para preservar o direito de criar um novo mundo. Um jovem a quem não foi dada a possibilidade de criar uma ordem humana flexível, modulada pelas diferenciações individuais, é compelido a "criar" a desordem. Trata-se de uma criação, sim, do exercício de uma força que tentei definir como uma espécie de vitalismo dionisíaco. Embora haja artistas hippies, a diferença entre os artistas e os hippies, me parece, é que os primeiros conseguem articular a sua criatividade - articulando o mundo ao seu imaginário (assumir-se é assumir o mundo, convém repisar), enquanto os outros vêem destroçada a sua criatividade, já que o seu imaginário está abafado pelos destroços do mundo. Eles renunciaram à função construtiva, extremamente penosa, que está ligada ao novo protagonismo dos jovens - e por isso fazem como os mikases japoneses na II Guerra: destroem-se, contanto que destruam a carapaça desse velho navio que nos carrega a todos e do qual não conseguimos libertar-nos.

  

Individualismo comunicante

           Indivíduo é um termo ambíguo. A afirmação de seu triunfo é perigosa sem a cautela de certas distinções. Há o individualismo comunicante e o individualismo isolante segundo o indivíduo é entendido como um ser diferenciado ou como um ser fechado sobre si mesmo. A diferenciação pede complementaridade, as visões nascidas do poder criador de cada um se somam e se enriquecem mutuamente: através dos indivíduos e de suas diferenças se restaura - diria melhor, se instaura a unidade das coisas, não como unidade acabada mas como unidade tensional e em movimento incessante. Há um individualismo de posse e um individualismo de doação; um de ter, outro de ser. O economista F. Perroux distingue, a respeito do desenvolvimento econômico, entre o avoir plus e o être plus. O individualismo possessivo deseja atrair os bens para usufruí-los no confinamento de seu casulo individual ou grupal, enquanto o individualismo criador e comunicante apropria o que recebe, para devolvê-lo re-criado e enriquecido. O primeiro tem mão única, mas o segundo se realiza de acordo com o já referido vaivém dialético. Para usar imagens de biologia, o primeiro opera por fagocitose - aprisionando tudo ao seu apetite; o segundo trabalha como a glândula, que retém a torrente sangüínea só na medida em que pode mudar-lhe a qualidade, enriquecendo-a. No caso do individualismo possessivo, o indivíduo já está condicionado pelo seu grupo, ou casta, que ele vê como projeção se si mesmo e de sua ambição possessiva. Instituições como a família, a propriedade, a Igreja etc., para esse tipo de individualismo não constituem instâncias intermediárias entre o seu dinamismo criador e a totalidade social a ser fertilizada por ele, e, sim, instrumentos de enfeudamento que o enquistam na totalidade e a desarticulam. Essas instituições, ao mesmo tempo que representam o indivíduo, o sufocam, e então a religião se torna sectária, a propriedade, opressiva, e a família, uma fonte de discriminações sociais.

          No outro caso, o indivíduo mantém o diálogo direto com o universo. Ele é um ponto da circunferência, podendo contemplar toda a vastidão do círculo. Este tipo de individualismo, paradoxalmente, leva à totalidade, à sociabilidade, à universalidade.

          A filosofia da criatividade elabora novo padrão de sociabilidade, através da redefinição do papel do indivíduo na sociedade. A sociedade, para sobreexistir, tem de negar-se, continuamente, pela incidência polêmica da consciência pessoal: pois a sua própria substância é dialética, formada duma continuidade descontínua que nos faz lembrar o pólemos patér pánton de Heráclito. Por isso é que o rio em que voltamos a entrar, para utilizar a sugestão pré-socrática, não é nunca o mesmo de antes. O filósofo do devenir, porém, estava atento ao fato de que a dialética não destrói a continuidade do ser humano, o que importaria destruir o homem; e mostra em cada manifestação individual uma manifestação do humano mesmo, tão rico e profundo que não tem limites: "Não poderás, escreve Heráclito, descobrir os limites da alma, ainda que recorras a todas as direções, tão profunda é a sua medida". É que o infinito do homem é o infinito, indivisível em si mesmo, se revelando e se realizando no tempo, in-finitamente, pela multiplicidade dos homens, os quais, todos, como lembrava Pascal, marcham através do tempo como se fossem um só Homem. A reiteração sui generis que o in-finito faz do inteiriço e indecomponível infinito, é toda a ambigüidade da história e o paradoxo do homem. É a realização do infinito do modo do tempo, discursivo, ilimitado, suscetível de mudança e crescimento contínuo. O tempo se tornou o método especial do homem, método permeado e fertilizado pelo in-finito, não para concretizá-lo cumulativamente, mas para exercer incessantemente a aventura de sua interrogação; para viver a experiência de ser, em todas as direções e em cada uma delas, como uma aventura válida, um caminho substancial, e não uma simples interrogação neantizante e frustrada. Não é só a aventura de interrogar, mas também a de responder por uma múltipla, diversificada e constantemente renovada resposta.

  

Outro conceito de temporalidade

           Creio que o infinito existe como dimensão a ser percorrida dentro do tempo, pois está encarnado na pessoa. O infinito, insisto, é o in-finito, a ilimitação, o "que é suficiente para todas as coisas, e as excede". Para nós, o finito é o aliado do infinito. E só pelo homem e no homem esses dois planos irredutíveis de certa forma se fundem numa mesma substância. Só pela pessoa humana se temporaliza o eterno, e o infinito se transforma em in-finito, isto é, o infinito em discurso, não mais a simplicidade inatingível - insuscetível de ser medida pelo tempo - mas o ato puro transformado em fermento da história, fonte de sua permanente tensão transcedentalizante. Eis o absoluto - entendido abstratamente como o anti-tempo - realizado historicamente no tempo, o tempo qualificado que é o da pessoa. O ilimitado, aqui, em vez de opor-se ao Infinito, é a sua reiteração e como que a sua imitação temporal; o número deixa de ser a antítese da perfeição, para seguir-lhe humildemente as pegadas. Pitágoras, através de Heráclito, encontra o caminho de Parmênides. O número abstrato de Pitágoras, dialetizado pelo movimento de Heráclito, encontrou o eterno de Parmênides. O sonho de atingir o infinito pelo número, que a visão estática de Pitágoras não permitiu realizar, passando a encará-lo como entidade válida em si mesma e subtraída ao seu próprio dinamismo - como uma espécie de numerus clausus - se tornou possível pelo instrumento dialético do siracusano; e assim também, a intuição de movimento, ao cabo do qual se descobre o ser, ingressa na filosofia, e faz com que a idéia generosa de Parmênides, de ser perfeito, não precisa alimentar-se da ilusão escamoteadora do devenir.

          A originalidade da experiência individual não impede, entretanto, que os homens se reencontrem no corpo da história, como membros da mesma durée, e este é o sentido da sentença do Mestre de Éfeso: "Os homens não compreendem como o que difere está de acordo consigo mesmo; é uma harmonia de tensões opostas, como a do arco e a da lira. O contrário é o que convém". E, de forma aparentemente mais desconcertante, acentua noutra passagem: "Comum é a todos o pensar". "Os que falam com inteligência devem apoiar-se no que é comum a todos, como uma cidade em sua lei, e muito mais firmemente, porque todas as leis humanas se alimentam duma só: a divina, que se impõe quando quer e é suficiente para todas as coisas e as excede".

 

 Aventura interrogativa

           Sartre transforma a função catabólica e aventurosa do indivíduo em função destruidora da humanidade mesma. O En-soi se neantiza em cada nova aventura interrogativa. A liberdade destrói a humanidade, e o absoluto do Sujeito não tem condições de ingressar na história. Sartre opera a ruptura entre o ser e o tempo. A solidão de Sartre é irremediável; o indivíduo sartreano não se dá conta, como o de Heráclito, de que "o que difere está de acordo consigo mesmo; e que há uma harmonia de tensões opostas".

          Acreditamos que o indivíduo se encontra sempre no início de decisões instituidoras de seu ser. No existencialismo sartreano , a interrogação do indivíduo não tem fecundidade no processo histórico, consumindo-se em si mesma, ao mesmo tempo que o Pour-soi se neantiza. O mundo morre em cada interrogação. Penso, ao invés, que o mundo se revigora, em cada interrogação.

  

A experiência, segundo Dewey

           Permanecer pela constantemente renovada inclusão do descontínuo é a condição do social. Divergimos de Sartre, que leva o corte dialético até a desarticulação da sociedade. E de Dewey discordamos exatamente pela razão oposta, pelo seu contingencialismo, que é um fluxo experiencial sem corte, sem a possibilidade de ascensão, dentro do próprio indivíduo - emergente do cosmos mas acósmico por natureza, como lembrava Blondel - da contingência para o valor que a transcende. Falta a Dewey a tensão verticalizadora que atravessa a horizontalidade do tempo e a transforma em temporalidade (no outro sentido da temporalidade, diferente do de Sartre), tempo descontínuo, qualificado, heterogêneo. Ele não percebeu que o Absoluto, no tempo humano, está inviscerado na contingência e emerge da contingência.

          O sujeito representa sempre o recomeço, enquanto a sociedade é uma durée contínua. O indivíduo é uma consciência original, eis um ponto a que eu desejaria chegar. O grande empreendimento, portanto, não é changer la vie, mas, como dizia Rimbaud, recommencer la vie.

  

Nosso discurso

           Nós outros admitimos um fundo substancial contra o qual se recortam as nossas interrogações e no qual se situa o nosso discurso. O homem não saca apenas contra si, mas contra o ser. O Pour-soi, a consciência, está sempre em suspenso, admitamos com Sartre: seu ser é um perpétuo sursis, concedamo-lo. Mas está em suspenso no sentido da incompletação e da indeterminação criadora, não no da neantiação; no sentido de que jamais de transformará num tout-fait, como pretendiam alguns transcendentalistas bisonhos. A insatisfação e o direito da aventura permanecerão até o fim. O tempo envolve um polpa rica, mas não pode abrir-nos todo o fruto. Mesmo na plenitude dos tempos, o Homem construído pelos homens, ao longo daquela marcha a que se refere Pascal, o homem pleno dos limites da temporalidade, ainda está ávido do absoluto.

          A tensão da consciência individual não se comunica, a rigor, à consciência coletiva: apenas se difunde, procurando, dentro dela, inserir-se noutra consciência individual. A estrutura da sociedade é cristalizada, é a sedimentação dos instantes criadores do indivíduo, reduzidos, depois da crispação, da incisão do absoluto, a gestos institucionais, de significação limitada e puramente temporal.

          O corte no tempo que produz a consciência individual rompe a contextura externa e contínua da sociedade, tendo esta, para sobreexistir, de recompor imediatamente a sua unidade compacta. A sociedade só assimila o que é temporalizável, condicionável ao espaço e ao tempo, e qualquer fermento estranho ela o digere - temporalizando-o - ou o sufoca. Ela só funciona no modo do tempo, por via do discurso, por partes limitadas que se integram cumulativamente. Em suma, ela é material, pesada, incapaz, no seu peso e opacidade, desse gesto leve que nos faz coincidir com o ato livre.

          A tensão vertical e transcendente da consciência individual que, num momento, apanha o eterno, se transmite à coletividade, mas corre sobre ela como a água sobre a superfície lisa, até encontrar uma fenda em que se abrigue. Esse ângulo reeentrante é outra consciência individual que a recolhe, não como sedimento mas como incitamento para a sua própria criação interior. A vida ou o élan duma alma jamais se transpõe a outra pela forma duma sedimentação: é uma semente que pode germinar noutro chão. Trata-se, sempre, duma recriação. Donde o fato de que a verdadeira influência do indivíduo só ocorre em relação ao outro indivíduo, cada um a sua vez, pelo processo da conversão dialética.

  

Privilégio da exemplaridade

           Convém fixar-nos um pouco no problema da arte em relação à educação. Lembremos, para continuar a nossa reflexão, o que já foi anteriormente enfatizado: que a arte não tem, como processo criador, o privilégio da exclusividade, mas sim o da exemplaridade. Ela constitui, apenas, um modo privilegiado do fazer humano ligado ao ser, como essência mas também como existência assumida. Esse assumir-se, realizado pela consciência, é paradoxalmente mais profundo onde esta é menos clara. Isso no fim , porque no início assumir-se é uma proeza da consciência aberta, um compromisso desta que, no entanto, só se torna viável se, naquele húmus profundo, outros compromissos tiverem sido forjados. Entre o consciente e o inconsciente, assim como entre o racional e o emocional, mas este só está na dimensão do homem quando atinge o nível da linguagem.

          A linguagem constitui a fronteira móvel entre o consciente e o inconsciente, o somático e o psíquico, o racional e o emocional, o voluntário e o involuntário. Ela não é uma construção da razão, como instância universal e eterna projetada sobre o contingente das coisas. Não é a ordem do espírito que o indivíduo consegue elaborar a despeito da ordem do mundo; não é fabricada na retorta de uma subjetividade divorciada das coisas que a envolvem; nem uma razão separada, no interior do próprio indivíduo, de suas instâncias não-racionais (sejam quais forem as classificações que a estas atribuam as diferentes doutrinas).

          Não, a linguagem é fina, transparente e imaterial e, ao mesmo tempo, carregada de todos os engajamentos espirituais que constituem o nosso ser. É racional e irracional; nós e os outros; essência e existência, isto é: significação das coisas para uma existência que se assume como destino e história. A expressão é a experiência quando se torna criação. Pela linguagem nós esculpimos os seres mas, simultaneamente, o mundo dos seres - com os seus valores e estruturas, com a semântica e sua sintaxe - nos modelam a nós. O erro do estruturalismo, nos parece, consiste em interromper essa corrente dialética, acentuando, excessivamente, o poder estruturante da sociedade em detrimento da criatividade.

          O que gostaríamos de destacar, em conclusão, é a necessidade de ensinar a ver, como fez admiravelmente Aldous Huxley em seu livro A arte de ver. Aliás, alguns historiadores da filosofia têm acentuado a característica da cultura ocidental de ser, antes de tudo, visual, a começar pelo tipo de imagens que freqüentemente utiliza. Daí a tendência a espacializar o que não é espacializável - como o tempo - e, quem sabe, a tornar um empreendimento prisioneiro do geometricamente claro. Não se pode esquecer, entretanto, que o fenômeno varia com as culturas e as épocas. Existem épocas "parnasianas", em que os objetos são recortados contra a claridade, e épocas românticas, em que o espírito volve à obscuridade e à esperança em que reside o mistério das coisas. Há povos que não resistem à visão constante dos céus nublados e, como observa Mme. de Stäel a respeito dos escritores alemães, terminam fazendo da introspecção o seu próprio método literário.

          De qualquer modo, é preciso ensinar a ver, a ouvir, a tocar, a recolher no olfato, como fazia Proust, as imagens da própria durée. Às vezes, ficamos pensando na pobreza dos que nunca ouvem música - eu digo música empaticamente, densamente, existencialmente. Temos pena, sobretudo, dos "doutores", dos "técnicos", de toda a fauna dos pedantes que não sabem música (saber significando sabor), e como é fácil ver claro essa lacuna onde se situa a sua esterilidade. A limitação dos especialistas ou o linearismo dos técnicos, resultam de um logos sem raízes sociais e históricas.

          Porém, essas raízes estão plantadas nos sentidos, seja qual for a altitude da obra realizada pelo homem. A verdadeira dialética da educação não é da libertação do homem em relação aos seus sentidos, segundo a parábola da caverna de Platão, mas a da encarnação, em que a infinita platitude do espírito desce à anfractuosidade de um corpo através do qual ele se torna história e destino.


Durmeval Trigueiro Mendes
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.
Rio de Janeiro, v. 59, n. 130, p. 227-240, jul./set.1973.
Com alterações feitas posteriormente pelo autor.