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Universidade, teatro e povo

Apresentação do livro que inaugura a Coleção Universitária de Teatro,
lançada pela Diretoria de Ensino Superior do MEC em 1963.


          No processo de renovação da cultura universitária que a Diretoria do Ensino Superior vem procurando estimular em todo o País, um dos problemas capitais consiste em promover a aliança das universidades com o povo brasileiro. E por duas vias que, no final, se fundem: a) a presença do Brasil na substância daquela cultura - presença traduzida, dinamicamente, pela interação constante entre a universidade e a luta pela afirmação e o desenvolvimento nacional; b) o alcance de camadas cada vez mais amplas de população pela influência da universidade.

          Trata-se, pois, de reformá-la e de expandi-la; de alterar-lhe a qualidade e de quebrar-lhe o confinamento aristocrático.

          A Universidade não poderá abranger senão uma parcela da população brasileira; mas o grupo relativamente reduzido não permanecerá isolado da comunidade nacional, desde que a continuidade solidarizante seja assegurada pelas condições democráticas de recrutamento das elites e, sobretudo, pela sua identidade de interesses e de propósitos com o povo.

          A Universidade deverá constituir um dos apoios mais eficazes do nosso desenvolvimento. Cabe às elites por elas formadas o papel de participar, com sua força disciplinadora, da fixação das opções que, na hora atual, dramaticamente se impõem ao País; e dos projetos que devemos eleger, ultrapassando as contradições e perplexidades do processo histórico em que estamos mergulhados.

          A grande confusão atual corresponde, em grande parte, à presença de uma quantidade de alternativas contraditórias, das quais nem as elites nem o povo sabem recolher a opção que nos convenha. Estamos perdidos no baralhamento geral, incapazes de distinguir e qualificar as soluções. Precisamos, urgentemente, escolher, qualificar e decidir.

          Mas não são as elites, somente, que vão decidir arbitrariamente essa jogada. Até faltariam à intelligentsia brasileira condições para outorgar soluções: para dirigirem sem serem dirigidas. Não podem elas reservar as intenções para si e o seu cumprimento para o povo. Não. O povo brasileiro, já adulto, começou a se rebelar contra o dirigismo arbitrário de suas camadas dominantes, e a mobilizar mecanismos de pressão que fazem contraponto com esse domínio. Tal fato tem uma extraordinária importância no sentido de tranqüilizar-nos quanto aos destinos do País que não dependem, já, das qualidades pessoais ou da vontade autônoma de seus dirigentes. O que se torna autônomo, cada vez mais, é o próprio processo brasileiro, fundindo no seu devenir as elites e a massa.

          Tentaremos compreender a estrutura dialética do processo, e fazer da própria consciência aperceptiva um de seus agentes aceleradores e disciplinadores.

          Em que consiste a estrutura dialética? Na simultânea similaridade e dissimilaridade entre elite e povo. O grupo dirigente se assimila ao povo, reconhecendo a perfeita validade de suas intenções e opções, e com elas fazendo causa comum; mas deve ganhar sobre ele a distância que lhe dá direito à visão prospectiva e à conquista de horizontes contidos apenas virtualmente em cada situação concreta. Só virtualmente: pois nem estão de todo explícitos em cada momento do processo dialético, sempre em vias de ser superado; e nem sempre são claramente acessíveis ao povo, mergulhado no nível das contingências imediatas. A pedra de toque das elites autênticas é, de um lado, a consciência projetiva capaz de alcançar o desenvolvimento do processo; e, de outro, a atitude de lealdade ao que constitui o interesse profundo do povo, subjacente aos interesses particulares e ocasionais de pessoas e grupos, e freqüentemente mal percebido pelo próprio povo enquanto subjugado à pressão do imediato. A consciência das elites é, portanto, a lucidez disciplinada pela fidelidade. Projeção, e não distorção.

          As elites autênticas representam a parte da sociedade que detém a função de distinguir, no jogo das contingências sociais e históricas, o permanente do ocasional, o real do aparente, o interesse nacional da astúcia dos privilegiados. Ocupando uma posição singular, como espectadora e participante, a elite intelectual desse tipo está comprometida com um interesse igualmente único : o da visão total, o da lealdade total a essa visão.

          Totalidade, numa perspectiva de ambigüidade dialética: de plena inserção no contingencial, cujo fluxo determina o próprio seguimento do processo; e de percepção do transcontingencial, proveniente do contingencial, mas obscurecido pela má consciência ou pelas paixões imediatistas.

          Não há, realmente, oposição entre os dois planos, mas uma continuidade interior, revelada aos que se prepararam para percebê-la: eis a ascese a que têm de submeter-se as verdadeiras elites; eis o seu fardo e o seu galardão. Na vida cotidiana e em todos os fatos que compõem a conjuntura nacional, se inscrevem os caminhos que deve seguir o País: o que falta é aquela lucidez necessária para ligar o que está perto ao que está longe, o presente ao futuro, a multiplicidade dispersa de hoje à orgânica falta de unidade do projeto nacional. Falta é compreender bem e lealmente a crespa e fugidia realidade nacional presente, e dela mesma retirar os rumos certos.

          Estamos, com efeito, diante de dois riscos, representados por duas categorias de pessoas: 1) as que se recusam a aceitar o plano contingencial e a admitir que dele se deve tirar o projeto nacional, substituindo-o por um arquétipo abstrato. São os que não percebem que os valores a serem atingidos por nós, como nação, não existem numa esfera separada dos fatos, e julgam-nos trazidos para a ordem real de um mundo paralelo a este, o mundo ideal. Os que não admitem a implicação dialética das duas ordens, e que a perfeita fidelidade ás exigências do plano factual conduz ao plano transfactual - o do futuro, o das aspirações permanentes e só progressivamente realizadas no decurso da história, o dos interesses universais, traídos, agora, pela mesquinharia de castas e grupos de toda espécie. 2) A outra categoria é constituída, igualmente, de pessoas, instituições e grupos incapazes de fidelidade integral às exigências da situação concreta a que estamos vinculados, mas por razão inteiramente diversa: não é mais o vezo abstracionista, é a má consciência. Os primeiros ignoram os fatos, lançam-se no irreal; os outros não querem transcender os fatos, para deles tirarem proveito. É evidente que os fatos são os fatos, mas a sua força está em apontar para as direções que os superam: permanecer neles, sobretudo em período de crise, só serve aos que desejam parar a história para não interromperem o seu próprio festim.

          Em política, por exemplo, os intelectuais transcendentalistas não resolvem nada com o seu horror ao mundo real e o seu encantamento pelos arquétipos; e os demagogos também não, porque a sua aparente fidelidade ao povo e às contingências a que está ligado penas encobre a procura de vantagens espúrias. Os demagogos são incapazes de resistir a apressadas reivindicações das massas e de servir aos seus interesses permanentes, que elas próprias, afogadas na crise, nem sempre chegam a vislumbrar.

          Eis, então, o que define o ser das elites e sua ambigüidade: a aliança da inteligência com a polis, combinando dialeticamente o engajar e o desinteresse, a expectação com o descortino, o incidente e o transcendente, o particular e o universal, a refração e a luz irrefratada.

          É difícil combinar a inteligência com a política, tais as tentações de um lado e do outro: do abandono sibarita, da pureza desencarnada; ou da fome de poder que se disfarça em ideologia.

          A consciência universitária é que, pela sua própria vocação, oferece condições de ser ao mesmo tempo presente e futura, mediata e imediata, talhada pelos fatos mas não coincidindo inteiramente com eles, alongando-se, além deles, como consciência judicativa capaz de medi-los e julgá-los.

          Entre as elites e o povo se estabelece uma combinação de continuidade e descontinuidade, em que esta se reconquista a si mesma, permanentemente, daquela, e a continuidade novamente se impõe à descontinuidade. É uma relação de abertura e de recusa, de comunicação e de corte, e por ela será sempre possível a redefinição radicalizadora das situações e dos problemas.

          Aliança da inteligência com a polis: nos termos em que a colocamos é que se define, igualmente, a aliança da universidade com o povo e o que hoje comumente se chama cultura popular.

          Lembramos que não compete às elites, fechadas em si mesmas, traçar os destinos do país. O problema é de unificação do povo brasileiro, obtida - no que concerne a um dos aspectos essenciais desse processo, e dentro do estatuto democrático - mediante a identidade de cultura que possibilita o verdadeiro diálogo entre o povo e seus representantes.

          É claro que a identidade fundamental não elimina naturais diferenças nas formas de elaboração e expressão da cultura: nas elites terá um certo grau de refinamento e pureza, decorrente da posse de instrumentos adequados e do exercício da consciência crítica e aperceptiva, que se inclui em sua vocação; no povo se revestirá de formas mais simbólicas que abstratas, mais concretas e imediatas, como lembrava Mannheim a respeito da unidade cultural da Idade Média.

          A estratégia para obter a comunhão da cultura não se apóia apenas - nem sobretudo - nos processos de escolarização de adultos, em que temos malbaratado muito tempo e dinheiro. As populações adultas precisam ser rapidamente integradas à comunidade nacional, sem terem de esperar pelas escolas. Por que não oferecer-lhes as idéias em jogo no País, as informações básicas que devem informar a sua conduta cívica e política em face dos problemas nacionais e internacionais; por que não estimular-lhes a sensibilidade, a compreensão humana, os padrões de um novo humanismo, através, não de especulações e doutrinas abstratas, mas de instrumentos apropriados ao povo: as artes, os espetáculos públicos, o cinema, o rádio, a televisão etc.?

          Lugar privilegiado entre os meios de promoção popular e de democratização de cultura cabe ao teatro, por ser uma forma quase mágica de nos inserir nos fatos e levar-nos além deles: de suas aparências gastas no cotidiano, de sua falsificação farisaica, de sua opacidade. O fato puro, revelado na arte teatral e, segundo aquela dialética a que há pouco me referi, aquele que nos pode mostrar a realidade subjacente e levar-nos do aparente ao real, do presente ao futuro.

          Por essa razão, distinguimos o teatro no programa de renovação cultural em que estamos empenhados. Iniciamos, hoje, mediante convênio com a Editora Civilização Brasileira S.A., a "Coleção Universitária de Teatro", com o lançamento de Os Mistérios da Missa, de Calderón de La Barca; a ele se seguirão, proximamente, Preparação do Ator, de Stanislavski, e Calígula, de Albert Camus. As traduções, excelentes, se devem a João Cabral de Mello Neto, Francisco de Paula Lima e Maria da Saudade Cortesão, respectivamente. O professor Martim Gonçalves colaborou na seleção das peças, e obteve traduções que, pela sua própria qualidade e pelos nomes que apresentam, constituirão, certamente, um motivo de êxito desta coleção.

          A "Coleção Universitária de Teatro" destina-se, especialmente, aos grupos teatrais de escolas de nível superior, que poderão constituir um dos grandes traços de união entre a universidade e o povo brasileiro.


Durmeval Trigueiro Mendes

Apresentação. In: Pedro Calderón de La Barca, Os Mistérios da
Missa
(Auto Sacramental Alegórico). (Trad. de João Cabral de
Mello Neto). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963 (Coleção
Universitária de Teatro, publicada mediante convênio firmado com
a Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura - v.1).