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Fenomenologia do processo educativo


Analisa os papéis da Faculdade de Educação como
escola de métodos, planejamento e pesquisa,
com a missão de construir uma nova paideia.
Examina a legislação do ensino de 1º e 2º graus, caracterizando
o processo intelectual da educação como reflexão crítica.

 

A Faculdade de Educação numa abordagem fenomenológica

           A Faculdade de Educação é o órgão de educação da Universidade, do mesmo modo que esta é o mais categorizado órgão de educação na sociedade. Isto é, sua consciência aperceptiva e operativa: uma forma de intencionalidade estimulada e disciplinada por um projeto. A educação é a arte da práxis humana: o método de sua orientação e de sua eficiência. Vinculados, por essa forma, os conceitos de educação e do projeto social, de intencionalidade e de eficiência, é fácil compreender por que estão igualmente vinculados a educação e o desenvolvimento.

          O desenvolvimento, com efeito, não consiste no simples movimento linear da sociedade, mas na realização de um projeto cuja interiorização na consciência dos que o integram e cuja viabilidade, através dos instrumentos que esta consciência promovem, constituem o objeto da educação. Está ligado, portanto, à idéia de planejamento, do mesmo modo que está situado dentro deste, como seu núcleo, o projeto educacional.

          Qualquer sociedade moderna precisa planejar sua educação reconhecendo nela a mais fecunda instrumentalidade para o projeto de seu desenvolvimento. Ora, a Faculdade de Educação deve constituir, no plano intelectual, uma das principais fontes de tal planejamento, do mesmo modo que os órgãos político-administrativos o são no plano operacional. Ela seria, no nível mais radical da causalidade, o sistema gerador de idéias e de técnicas responsáveis pelo projeto educacional.

          Temos, em várias oportunidades, enfatizado o problema da qualidade no planejamento da educação. A qualidade, no caso, se confunde com a idéia fundante de uma categoria, o modelo pedagógico que há de inspirar o administrador e o planejador, cabendo especificamente a estes combiná-lo com as variáveis econômicas, sociais, culturais, que a condicionam, assim como encontrar os métodos e técnicas adequadas a sua concretização. Cabe à instituição encarregada de elaborar a ciência (sensu lato) da educação fixar a qualidade do profissional que se chama, por exemplo, o professor, e o tipo de formação que lhe corresponda. A qualidade, no caso, não significa propriamente o mérito, mas a natureza da ocupação, a sua tipicidade, aquilo que os escolásticos chamariam a qüididade.

          Ora, essa qualidade não é imutável, mas, ao contrário, acompanha as oscilações do tempo e do lugar, donde a necessidade de imprimir à ciência da educação, que a define, um sentido não essencialista e intemporal, mas dinâmico e histórico. É preciso estipular o tipo de professor segundo as características de cada nível de ensino, as peculiaridades de cada meio sociocultural e as técnicas de seu ofício. É preciso igualmente conter nossas idealizações, ao desenvolver o perfil de um educador, nos limites de nossas possibilidades em recursos humanos e materiais, de modo que a qualidade seja preservada, mantendo-se autêntica, mas se concilie com a quantidade postulada pela democratização educacional.

          Algumas conseqüências se deduzem, facilmente, da colocação que acabamos de fazer através de um exemplo.

          Fundamentalmente, a Faculdade de Educação será uma Escola de múltiplo saber, retirando os estudos da educação do imantismo pedagógico que os esterilizou até agora na tradição das Faculdades de Filosofia. Nela a pesquisa educacional deve ser ao mesmo tempo um saber para a ciência e um saber para a política, para instaurar novos padrões de conhecimento, no campo que o especifica, como para instaurar nova paideia, dentro de uma polis que ela ajuda a construir, a compreender ou a transformar. É inerente à Faculdade de Educação ser ao mesmo tempo acadêmica e transacadêmica, preocupando-se com os fatos não apenas para especular sobre eles mas também para transformá-los, de acordo com um projeto político, no sentido amplo da palavra.

          Paideia e politheia são indissociáveis; correlatamente, também o são a educação e a práxis. Esse reconhecimento prático da Faculdade de Educação não se situa apenas ao nível da formação profissional, mas também no âmbito da pesquisa básica. Saindo de uma pesquisa de arabescos, a Faculdade de Educação deverá inserir-se no processo substancial do nosso desenvolvimento. Tais exigências, que decorrem, a nosso ver, da própria natureza do projeto educacional e das instituições que lhe servem de suporte, se tornam particularmente imperativas num país subdesenvolvido, onde todos os instrumentos de compreensão e transformação da sociedade precisam funcionar com redobrada eficiência.

          De acordo com nosso método, decorrente do conceito de educação acima apresentado, faremos a análise da educação combinadamente com a da práxis, de que ela é ao mesmo tempo a expressão e a recta ratio. Estamos convencidos de que, sem uma correta definição da educação e de sua instrumentalidade específica, não poderemos compreender o papel da Faculdade de Educação, uma vez que a esta compete exatamente definir e assegurar tal instrumentalidade.

          A educação gera uma forma de consciência: torna explícitos os valores e os projetos do indivíduo e da sociedade, isto é, o sistema de significações em que ambos se sustentam, e as idéias normativas que polarizam o respectivo dinamismo em busca de novos valores ou do rejuvenescimento dos valores antigos. Como valores e projetos constituem o cerne da cultura do grupo ou da comunidade nacional, a consciência orientada no sentido de captar uns e outros representa, basicamente, uma consciência da cultura, um meio de compreendê-la e de promovê-la. Trata-se de uma consciência aperceptiva, mas também crítica, de uma função simbólica mas também catabólica, integradora mas também desintegradora, embora a desintegração, no caso, seja imposta pela percepção de novos valores, pelos quais o Sujeito histórico se ilumina.

          Como instância de educação, a Faculdade de Educação gera esse tipo de consciência mas produz igualmente um tipo especial de ciência (da educação). Entendido que os valores constituem a substância do projeto, permanece íntegro esse duo - valores e projeto -, significando o projeto existencial e operativo de encarnar os valores.

  

          Educação: intencionalidade radical

           O estatuto da ciência da educação é, no fundo, ciência aplicada; e sua especificidade deriva do modo especial de ser aplicada. Trata-se de fixar o modo correto de alguém dirigir sua ação segundo seu próprio projeto; como estruturar sua visão, como situar-se, como adaptar-se a realidades existentes, como transformar realidades novas, como tornar a existência um ato de inteligência continuada. Trata-se de ordenar operativamente a visão da realidade em função do projeto pessoal ou social; um modo de ver o mundo, colocando-se nele como parte de sua criação ou de sua ordem; um modo de ver-se como instância de sua própria criação na mesma medida em que desempenha um papel na criação e na origem do mundo. Instrumento do seu próprio projeto, o homem o é desde o momento de formulá-lo.

          Nesse plano, a ciência da educação constitui um saber/fazer radical em que se baseia a existência e o conjunto de iniciativas que a instauram ou a entretém. A pesquisa significa a busca de um novo cogito instaurador; só na solidão artesanal que ela propicia isso é possível. Solidão da conversão. Quem recebe uma verdade precisa ficar só com ela e revesti-la de seu próprio ser: ao voltar para a comunicação com o nosso parceiro, ela vem embebida do que elaborou nossa intimidade solitária. E por isso, a verdade, que se enriquece pela contribuição de todos, tem de alimentar-se na solidão de cada um. Na sua apropriação. O vínculo pedagógico é apenas isso - uma conversatio entre dois logos; de um a outro, o tempo da germinação. Um propõe, o outro acolhe, e ao devolver o que foi proposto, a resposta será a recusa, pela proposição de outro verbo, ou a adesão, na qual o verbo de quem recebeu se integra - enriquecendo-o - no verbo de quem deu. A conversatio é uma conversio.

          O indivíduo desenvolve sua cultura no e pelo trabalho; mas, ao mesmo tempo, a cultura não é coextensiva com este; transcende-o como instância crítica e criadora. Por exemplo, a escola média dá a formação profissional, mas esta só é autêntica quando a tecné, na qual o indivíduo é instruído, constituir uma práxis autêntica, abrangente do seu projeto existencial global - o seu fazer que incorpora o seu ser; o fazer é fazer-se refazendo o seu "entorno" - e abrindo, dentro dele, espaço para sua própria e permanente recriação. O indivíduo não cai dentro de uma profissão como um objeto passivo se encaixa dentro de um escaninho, ou um bicho-da-seda dentro de seu casulo. Ele se torna elemento ativo e criador, não só porque se movimenta dentro do seu emprego, como também porque é capaz de olhar o mundo, além deste, como um horizonte de possibilidades para sua promoção humana e social. Ele precisa estar armado de uma consciência crítica e prospectiva para não cair num emprego como uma pedra cai num poço, mas para mergulhar numa corrente que pode levá-lo sempre adiante. Sua habilidade fundamental é para exercer criadoramente seu ofício, aperfeiçoando-o, extraindo dele uma consciência gratificante que está ligada só a um opus - e nunca a uma tarefa - e transcendendo-o sempre para outros, mais próximos de sua ambição criadora e de sua capacidade.

          Entretanto, para que a cultura não pare no trabalho, é preciso dar-lhe chances fora deste: no lazer. Lazer significa existência individual assumida pela consciência intencional, criadora. Existência como liberdade e projeto. Lazer significa a possibilidade de recuperar as forças originais, comprometidas, pelo trabalho, com o projeto coletivo, do mesmo modo que o trabalho representa exatamente sua antítese dialética: o comprometimento dessas forças no projeto social. No entanto, recompostas suas provisões criadoras pelo lazer, é no trabalho que o indivíduo vai utilizá-las, recomeçando tudo de novo, cada uma das quatro categorias - educação, cultura, cidadania, lazer - gerando todas as outras.

          De fato, o projeto existencial se desdobra numa sucessão de projetos e iniciativas. Artesão do seu próprio ser, no começo, o indivíduo terá de ser depois artesão de muitos e diversificados fazeres (no projeto existencial ele faz seu ser e, simultaneamente, seu ser faz seu fazer). Há uma espécie de dialética pela qual um fazer inicial instaura o ser, e depois o ser instaurado realiza os múltiplos fazeres através dos quais ele se enriquece e consolida.

          A educação é um artesanato: a arte de "tomar partido" no complexo infinito de possibilidades que cercam a existência de cada um, fixando nele seu recorte individual. E depois, indefinidamente, ir "tomando partido" nas várias circunstâncias através das quais o projeto existencial se materializa, ou seja, a intencionalidade radical do ser humano ganha corpo, expandindo-se e diversificando-se no plano empírico da ação.

          Lembrando a clássica distinção entre o agir e o fazer, o agir é a primeira disciplina fundamental do ser humano, frutificando na multiplicidade in-definida do fazer. O agir, na filosofia tradicional, era o fazer na ordem dos valores, e o fazer, o agir na ordem da matéria. Ora, o fazer e o agir se cruzam, dialeticamente, de modo que os valores saem das mãos do homo faber tanto quanto entram no espírito do homo sapiens. O ser é o fazer.

          O artesanato educacional apresenta um complicado processo de articulações. Em primeiro grau, a arte é a ciência de modelar o projeto existencial de que já brota o agir; em segundo, a arte é a ciência de modelar o próprio agir, que frutifica em várias direções (estado de vida, profissão etc.); em terceiro grau, a arte é a ciência de modelar os vários fazeres que materializam o agir e de que ele se nutre, dialeticamente.

          Vejamos, por exemplo, o que significa ser médico, do ponto de vista de um artesanato. No primeiro momento - de escolher uma profissão e situar-se nela - expressa uma opção coerente na linha da intencionalidade do indivíduo como ser no mundo e, portanto, um prolongamento do projeto existencial; mas, como materialização empírica do projeto existencial, esse momento já se insere na condição de fazer; quem vai ser médico chega a um momento em que tem presente na consciência, simultaneamente, o perfil real da atividade específica a que vai se dedicar e o projeto de toda sua existência, condicionando-se mutuamente a esses dois fatores. Esse segundo momento, correspondente ao segundo grau, portanto, é essencialmente ambivalente, porque é de mediação entre o projeto no nível da existência e o projeto no nível do fazer, entre o artesanato do primeiro grau (do ser) e o do terceiro grau (da ação empírica e materialmente definida).

          Tal fazer, portanto, tem duas faces: uma, ligada ao sujeito como instância criadora, e outra, vinculada ao objeto. Um terceiro grau do artesanato educacional diz respeito, fundamentalmente, ao objeto. Por exemplo, a medicina, como objeto, tem seu recorte próprio, impõe suas próprias normas, que não fluem somente do sujeito. Não se pode dizer que essas normas o excluam, já que as qualidades subjetivas do médico colaboram com seu saber, mesmo no sentido operativo. Na verdade, há uma dialética, em cada fase, entre o valor preponderante que a caracteriza, e os valores subjacentes que configuram as outras fases.

          O modo mais eficiente e apropriado de apoderar-se do objeto - no caso, a matéria que constitui a medicina - representa a educação médica, e aí temos o terceiro momento do artesanato educacional. Quais os problemas de tal artesanato, nesse grau e nesse exemplo? De um lado, importa definir, através de métodos epistemológicos adequados, o saber necessário a um médico, e de articulá-lo com outros saberes que o complementem e ampliem; de outro lado, trata-se de estabelecer as condições adequadas - quanto ao tempo e aos métodos - de apropriar esse saber. É claro que nesse processo de apropriação, colocado no terceiro momento do artesanato educacional - isto é, no momento regulado predominantemente pelo Objeto - o Sujeito não desaparece; apenas ele é focalizado mais como matéria para um determinado fazer, que como fonte de agir, do "sentido", da "vocação" a ser manejada com vistas a produzir determinada "forma", e nisto consiste a aprendizagem.

          Como operar essa massa de virtualidades que se concentram no indivíduo? Evidentemente, a matéria a que se aplica a técnica pedagógica abrange todo o ser do educando, logo, também seu agir: não se pode tocar nesse objeto, nem tirar dele os efeitos desejados sem se acomodar ao jeito dele, que se expressa no seu agir. O que queremos dizer, contudo, é que esse agir, agora, nesse terceiro momento, é enfrentado sobretudo como Objeto. Embora esse Objeto seja de caráter excepcional, pois é impregnado da força criadora do Sujeito, sem reduzir-se nunca à passividade e à inércia. Nesse caso, há uma posição dialética. O indivíduo, ao educar-se, não porta, como simples instrumento, a ação de educador; ao contrário, o educador o que faz, com seu toque estimulador, é transformar o educando no instrumento de sua própria força, isto é, de sua própria subjetividade. A ação do educador e do educando recai sobretudo no agir, que é radicalmente criatividade; e o agir, convertido em instrumento, é um jorro incessante de diferentes fazeres. A educação consiste, basicamente, em acionar o agir; em desatar a potencialidade instrumental que este representa, em ligar o homem-criador ao homem-artífice. É despertar o agir, estimulando sua intencionalidade própria, que se traduz como rumo e como força. Um homem é um ser intencional na medida em que descobre um sentido para sua existência e emprega a força de que é capaz para objetivá-la. E a educação não é senão a disciplina do ser intencional. Toda a tarefa do educador reside apenas - e já é demais - em descobrir, preservar e corroborar a intencionalidade do ser do educando.

          A ciência da educação é, portanto, ciência aplicada: ciência do fazer humano no sentido forte da intencionalidade prolongada nas manifestações empíricas do fazer. Ela abarca toda a distância que vai da sabedoria à técnica. Trata-se sempre de um saber fazer desde o mais radical, o saber fazer com o próprio ser, no primeiro momento do artesanato a que nos referimos. Esse primeiro fazer, que instaura o ser, pressupõe um saber, embora esteja este ainda submerso em intuições que nascem, simultânea e inextricavelmente, do indivíduo e do contexto social que o condiciona.

          A ciência da educação constitui, a nosso ver, o objetivo fundamental da Faculdade de Educação. Como saber e como fazer, e como um saber que resulta de um novo fazer do homem, ela constitui hoje uma ciência nova, de cujo ineditismo poucos suspeitam, e a maioria não chega a conceber além das palavras. Ela implica uma nova epistemologia, uma nova práxis - um humanismo novo.

          É o sentido e a eficácia dessa nova paideia, surgindo nos céus históricos do nosso tempo, que nos parece constituir a função radical de uma Faculdade de Educação na medida em que esta se encontra no ápice da Universidade e do próprio processo cultural.

          Como construir uma nova paideia? Esta nos parece constituir a missão de uma Faculdade de Educação, e a razão pela qual ela se coloca no cume da Universidade. Ela é, repetimos, o órgão de educação da Universidade e, por meio desta, o órgão de educação da própria sociedade, constituindo consciência e disciplina de sua práxis.

   

Preliminares para uma teoria da Faculdade de Educação

 

  A função "educação"

           À Faculdade de Educação está reservada a função-educação na Universidade e, em grande parte, na própria sociedade.

          Tal conceituação só por equívoco poderia ser considerada tautológica. Nossas universidades transformaram o saber sobre educação numa especialidade autônoma, ministrada por um de seus cursos, quando esse saber deveria encarnar-se nas suas estruturas e dirigir permanentemente seus passos. O saber pedagógico deve informar (sem constituir fator exclusivo, obviamente) a organização da própria universidade e de seus cursos, o planejamento de atividades pedagógicas e, sobretudo, o modo pelo qual outros saberes - correspondentes às várias especializações científicas - se convertem de saber-em-si em saber-para outros, de saber objetivado em saber comunicado. Essa reconstrução de conhecimentos para efeito de comunicação didática constitui a essência da pedagogia como ciência e como processo operacional. Isto é, como práxis. Do ponto de vista do saber, portanto, a pedagogia é constituída das relações entre o educador, o educando e o saber propriamente dito. Ao conjunto dessas relações, com o que elas envolvem de ciência e de operacionalidade, é que chamamos aqui a função educação.

          Em certo sentido, poderíamos considerar a Faculdade de Educação uma escola de métodos, e a esse propósito cabe desde logo uma distinção fundamental. A tendência a hipostasiar o saber chega a atingir os processos mais estritamente ligados à experiência; o problema dos métodos, por exemplo, passa à ordem de uma didática que ignora, basicamente, as exigências de cada categoria do saber, determinadas pelo seu objeto específico e pela experiência dos que com ele estão identificados. Classificou-se a educação em objeto de estudo, deixando de ser uma práxis dirigida pela ciência dos educadores.

          A análise dessa reificação do saber pedagógico parece indispensável, não só à compreensão de graves deformações ocorrentes no Brasil, como também à instauração de um novo modo de pensar e fazer e educação, devendo a Faculdade de Educação, como instituição nova, constituir o ponto de origem desse processo instaurador. Faremos apenas algumas indicações, a título de ilustração.

          Numa universidade, todas as escolas são, em certo sentido, de educação, já que o saber próprio que as especifica se transforma em objeto de educação, mediante processos que são essencialmente pedagógicos. A Escola de Educação e, por exemplo, a de Medicina, são duas instâncias educacionais, intimamente relacionadas entre si, uma como produtora de saber pedagógico, e a outra como um de seus consumidores. Mas, em compensação, esta última está inserida na própria práxis da Medicina, pela qual se inspiram a profissão e o ensino correspondente. Daí não poder existir nenhuma pedagogia geral que, no ensino médico, possa prescindir da pedagogia médica, alicerçada na referida experiência. O que resulta dessa consideração, entre outras coisas, é que a Faculdade de Educação, ocupando-se da função educação na universidade, constituirá um centro de saber pedagógico, haurido, sob o estímulo e direção de especialistas nesse campo, da contribuição de todas as áreas de ensino universitário, e encarnado na práxis de todas as unidades integrantes da universidade.

 

 Metodologia educacional

           A especificidade de cada escola ou faculdade na universidade é de matéria e forma. A matéria, como campo de saber, e a forma de organizá-la e de transmiti-la impõem, uma e outra, suas respectivas metodologias. As duas são determinadas pela natureza do Objeto e pela natureza do Sujeito. O Sujeito, como fonte criativa, é capaz de alterar e multiplicar seu desempenho de acordo com as circunstâncias pessoais e sociais. A idéia do Sujeito está associada à do in-finito, um inacabado que incessantemente supera os atuais acabamentos por força de sua própria e inesgotável virtualidade. É o Sujeito que, primeiro, constitui o Objeto, transformando a coisa opaca em algo significativo; e, depois, torna o Objeto, de estrutura fechada, em estrutura aberta a sua própria reestruturação.

          A fim de ter uma aplicação bastante concreta, importa apenas lembrar que a polivalência da educação só pode ser entendida a partir dessa dialética: como operar em face da potencialidade do Sujeito e das determinações do Objeto. Uma educação puramente do Objeto se esgota nos desempenhos do educando ou de qualquer pessoa num momento dado. Esgota-se no praticalismo. Uma educação puramente do Sujeito teria que derivar ou para uma nova aventura, um diletantismo da consciência solitária numa linha "existencialista", ou para um vitalismo dionisíaco do tipo individualista na linha nietzschiana. Essas duas alternativas são belas mas ineficazes, como é ineficaz o próprio diletantismo ou a consciência do trágico. A educação autêntica é ao mesmo tempo do Sujeito e do Objeto.

          Por outro lado, o Sujeito abriga condições psicológicas individuais e típicas, segundo condições socioculturais que ele interioriza, reduzindo-as a sua própria estrutura de Sujeito. O processo educacional está enquadrado nas estruturas e funcionamento da subjetividade. O sujeito, como tal, não se resolve nos fatores psicológicos, concebidos como valores per se, imanentes ao indivíduo. O sujeito funde nesse lastro psicológico, que realmente existe, condições e valores socioculturais. Um conceito mais concreto: "a orientação educacional não é só a busca de preferências supostamente existentes em estado puro dentro do espaço psicológico da criança e do adolescente, porque não existe espaço psicológico puro: o psicológico é o social interiorizado. A orientação educacional parte do reconhecimento do confronto homem-mundo, sob a forma dialética do mundo a fazer-se pela ação do homem, e do homem a fazer-se a si mesmo enquanto faz o mundo: o reconhecimento, portanto, de que as preferências vocacionais resultam de um apelo de dentro e de fora, simultaneamente educacional e profissional: o indivíduo e a sociedade, o universo da criação e o universo do trabalho. Por isso, em termos filosóficos, a orientação é uma só, com diferentes nuanças segundo as etapas da educação."

          A subjetividade, ao mesmo tempo que apresenta identidade própria, já é representativa de um contexto que a ultrapassa. Mantém-se a unidade, simultaneamente compósita e inteiriça, graças ao poder que tem a subjetividade de integrar termos contraditórios - por exemplo, o "interior" e o "exterior" - mas, ao mesmo tempo, de afirmar sobre a diversidade e a contradição a sua identidade fundamental. Essa tensão permanente entre a subjetividade e a objetividade, entre a apropriação da realidade exterior pelo indivíduo e a sua permanente abertura ao dinamismo da ordem social, constitui uma dialética de importância essencial na fenomenologia da educação, tanto quanto da sociedade e da cultura.

          A relação fundamental entre o indivíduo e a sociedade se realiza em forma de intersecção. O conceito geométrico - do ponto onde se cortam duas linhas ou duas superfícies - serve para definir essa intersecção pela ruptura; essa vida nova que surge de uma ferida aberta; essa combinação de continuidade e descontinuidade, em que esta se reconquista a si mesma, permanentemente, daquela, e a continuidade novamente se impõe sobre a descontinuidade.

          Inter e secção: abertura e recusa; comunicação e corte. O indivíduo ingressa na sociedade, não para se amassar, mas para cindi-la, nela se engrenar pelo conflito - desencadeador de uma seqüência dialética - ao cabo do qual a sociedade terá condições de acolher, ou não, uma nova forma de consciência, um novo ponto de partida; uma redefinição das situações e dos problemas.

          "A cultura também é dialética. Informa-a uma dupla intenção: a de descobrir e a de transcender; de refletir fatos e projetar utopias; de ser ao mesmo tempo reflexiva e tensional."

          Há uma racionalidade ex-vi do Objeto, outra, ex-vi do Sujeito. A conciliação entre as duas - de um lado, as exigências do aluno / professor, como Sujeito, e de outro lado, as exigências do Objeto - e o controle da interação dialética constitui a Metodologia educacional. Daí a heresia generalizada, apesar de tudo, da didática separada como um saber em si.

          É próprio da dialética o apelo, sob forma tensional, de cada um de seus termos para o termo que o contradiz. Esse apelo não se manifesta apenas em momentos privilegiados (embora os tenha) como os do confronto entre as antíteses no processo de integração. Cada termo antitético já se encontra enredado no processo de complementaridade. Assim é que o Sujeito se liga ao Objeto, já dividido, tensionalmente, entre sujeito e objeto, isto é, ao modo de um e de outro. O Pour-soi não configura um saber do sujeito absoluto, como pretende, sem se dar conta, o psicologismo pedagógico. E o Objeto, por sua vez, não é uma matéria inerte nem um En-soi absoluto, mas uma realidade já contagiada pelo dinamismo do sujeito movendo-se dentro do processo em que se instauram o ser e seu comportamento. Sua realidade só se completa com o Pour-soi e o En-soi. Nem objetivismo absoluto, nem subjetivismo absoluto. Nem o império da matéria da ciência, nem o do comportamento do aluno e do professor, nem, tampouco, o império do método. Nenhuma dessas entidades é inteiramente válida por si. Elas formam uma tríade dialética cujas partes se articulam segundo um processo dinâmico de complementaridade.

 

 Aspectos da Didática

           Ora, o que acontece com o nosso sistema educacional, especialmente na universidade, é exatamente a separação entre esses três aspectos. Separação do ponto de vista estrutural e do ponto de vista funcional. Cada um deles se organiza como um todo segundo sua própria lógica interna. Esse fenômeno, com raras exceções, parece flagrante no caso da Didática, como era ministrada pelas Faculdades de Filosofia e, mesmo, por algumas Faculdades de Educação, as quais realizam, como há pouco acentuei, a hipóstase do processo pedagógico. O método substancializado. Com a agravante de excluir quase tudo que deveria servir-lhe de base. Que vem a ser esse tipo de Didática e como se organiza? Antes de mais nada, exclui as exigências metodológicas de cada campo específico do conhecimento. Pois até mesmo as Didáticas Especiais, em que se fragmenta a Didática Geral, guardam com as respectivas áreas científicas uma relação meramente extrínseca. A didática de Física, por exemplo, não incorpora a metodologia científica própria dessa área do saber. Tal articulação, de resto, exigiria que o professor de Física extraísse de sua matéria os elementos que, juntamente com outras instrumentalidades pedagógicas, deveriam compor a didática de Física; ou que o professor de Didática, além da formação especializada em Física, trabalhasse em íntima conexão com o responsável por essa matéria.

          É certo que se exige, pelo menos legalmente, que o professor de Didática de Física (ou de qualquer especialidade) tenha a formação científica correspondente. Mas isso não é suficiente: impõe-se colher a Didática do próprio exercício da Física, em termos de elaboração metodológica dessa ciência. Exatamente nesse ponto se verifica a ruptura do processo pedagógico. O didata de Física é o didata superposto ao físico, usando na didática uma metodologia que não incorpora, intrinsecamente, a metodologia da Física. Persistem dois tipos de racionalidade, duas práxis distintas. A primeira razão desse fenômeno provém da unilinearidade da lógica que preside a formação do saber, simétrica à que preside sua transmissão, gerando o paralelismo em vez da integração. A segunda, em parte derivada da primeira, é a formalização incorreta do campo de cada ciência. Elas são estruturadas muito mais de acordo com uma lógica formal "vazia" do que com a lógica dialética capaz de captar os apelos de uma ciência para outra, da forma para a matéria, do conhecimento para a práxis (entendida, aqui, como forma de construção do conhecimento). Deixando de ser operativo, o conhecimento se converte em simples exercício de uma racionalidade vazia, mas cheia de ambição de controlar a realidade. Entre esse tipo de racionalidade e a realidade se interpõe, para iludir a primeira e sem que ela o pressinta, um jogo de suposições não verificadas que funciona como sucedâneo da legítima reconstrução do saber pedagógico. Suposições derivadas, muitas vezes, do "senso comum"...

 

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