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Comunicação cultural na América

Notas sobre a cultura brasileira e as relações culturais entre o Brasil
e os demais países do Continente


Relatório de pesquisa realizada em 1959 em oito estados brasileiros
sobre o trabalho do pesquisador e professor
nas áreas de história, literatura, filosofia, antropologia e arqueologia,
ciência política, estudos clássicos, direito.
Descreve as condições dos serviços de documentação, informação
e difusão cultural, e do intercâmbio com outros países.


1. Introdução

 

2. Apresentação dos atuais critérios de intercâmbio cultural no plano internacional

    (Intercâmbio a partir das instituições universitárias e não-universitárias)

 

3. Isolacionismo e rarefação intelectual

    (Sugestões para uma política corretiva. O problema da universidade)

 

4. Instâncias disciplinadoras do processo intelectual

    (Criação de novos mecanismos institucionais que disciplinem a atividade intelectual)

 

5. O intelectual brasileiro e as instituições culturais:

    5.1 Análise das instituições existentes

    5.2 Instituições de documentação e informação

    5.3 O problema do livro e da revista erudita no Brasil

    5.4 Instituições de pesquisa e atividades científicas

    5.4.1 Obstáculos à pesquisa

    5.4.2 Atividades científicas nos campos compreendidos pela investigação

 

6. Estudo global de cada campo investigado

 

 

1. INTRODUÇÃO

    Nota preliminar

     O relatório que se vai ler sobre "Comunicação Cultural na América" nos foi solicitado pelo Prof. Anísio Teixeira, como subsídio para os estudos que vem realizando o American Council of Learned Societies, do qual faz parte o ilustre educador brasileiro. Em forma sumária, são apresentados os resultados gerais de uma pesquisa feita em oito estados do Brasil sobre as condições de trabalho do pesquisador e do professor brasileiro, na área das ciências sociais e dos estudos clássicos, e as possibilidades de comunicação cultural com seus colegas dos outros países do Continente.

    Os problemas que constituíram objeto da pesquisa aparecem no relatório dentro duma tessitura sistemática que reúne os fatos dispersos numa visão coerente e unificadora. Acreditamos insuficiente, para os objetivos dessa entidade, a reportagem fragmentária ou os levantamentos apenas enumerativos, onde a complexidade disparatada dos fatos não pudesse vincular-se à compreensão orgânica de suas causas e implicações. Aí está o espírito com que foi redigido este relatório. Não poderíamos deixar sem referência, nesta introdução, a pressa a que fomos obrigados, dada a exigüidade de prazo: quarenta e cinco dias para visitar sete Estados brasileiros e elaborar o relatório. Não foi possível, em tão curto período, o aproveitamento integral da documentação que chegamos a coligir. A abundante colheita e o sem número de perspectivas e sugestões nascidas nesse contato intenso com a realidade cultural brasileira reclamariam elaboração mais longa e tranqüila, para a qual, sabe Deus, poderemos ainda voltar os nossos esforços, em oportunidade de mais lazer.

    Teríamos ainda de esclarecer, em duas palavras, o critério de elaboração deste trabalho. Antes da pesquisa, como é natural, procuramos fixar nitidamente os objetivos gerais que a deveriam conduzir; numa segunda etapa, já em contato com os fatos, foi o nosso esboço inicial ampliado e modificado pelas exigências empíricas do quadro que viemos a surpreender; finalmente, montamos um novo esquema, não mais apriorísticamente, mas subordinado ao material coletado. Mesmo assim se notarão alguns claros no corpo de trabalho, e indicações, no plano esboçado, de análises só incompletamente realizadas. Constatar-se-á, em suma, que o esboço promete mais do que dá este apressado relatório. É que a pesquisa nos sugeriu uma quantidade de temas e direções, que apenas pudemos deixar indicados no plano e escassamente explorado no relatório.

 

Plano do relatório

     1. Tentamos focalizar, neste trabalho, alguns problemas fundamentais da cultura brasileira, de nossa organização universitária e do intercâmbio cultural entre o Brasil e os demais países da América. Interessou-nos, particularmente, esclarecer e aprofundar o conjunto das causas e circunstâncias - antigas ou recentes - que determinaram um certo perfil de intelectual, de professor e de pesquisador com que afinal viemos a identificar-nos. Procuramos surpreendê-los no ambiente por que estão condicionados; caracterizar a sua atitude em relação à realidade brasileira. Pesquisamos condições, formas e instrumentos de trabalho, assim como os obstáculos ao trabalho coletivo, ao espírito de equipe e à cooperação intelectual nos vários planos e níveis: nacional e internacional, universitário e não-universitário. A investigação, de acordo com o que foi recomendado pelo American Council of Learned Societies, estendeu-se às duas grandes áreas dos estudos sociais e dos estudos clássicos: ensaiamos, neste particular, a visão do conjunto em cada campo, ao mesmo tempo que as suas notas específicas e o grau de identificação do pesquisador e do professor com a sua especialidade.

    A análise sincera de uma problemática mais ou menos comum a todos os países da América Latina, e o esforço no sentido de radicalizar as indagações mais fecundas, teriam de levar-nos ao abandono das fórmulas e considerações convencionais e a surpreender mecanismos e tendências freqüentemente esquecidas ou ignoradas. Creio, porém, que esse procedimento, que refoge aos clichês e à reiteração rotineira de certas colocações e soluções, não por força de qualquer intuito de originalidade mas de simples fidelidade aos fatos, vistos nuamente e sem idéias preconcebidas; e que esse esforço de aclarar a trama empírica com a revelação das causas mais profundas, é que, afinal, interessam de forma mais alta e duradoura aos objetivos do American Council of Learned Societies.

 

 Plano de trabalho

     1. O trabalho pretende situar o intelectual no quadro das circunstâncias brasileiras, como o ator na cena; estudar a sua formação cultural e, sobretudo, o seu comportamento em relação às instituições culturais. Sob certos aspectos, trata-se de uma análise dos mecanismos institucionais brasileiros e do processo de desenvolvimento cultural de nosso país.

    Pretende, igualmente, como há pouco assinalamos, prender a multiplicidade fragmentária dos fatos a certas idéias unificadoras; busca o fato capital que tornará inteligível todo o nosso processo espiritual. A meu ver, esse fato, no Brasil, é o desligamento entre a inteligência brasileira e a realidade brasileira. É o fenômeno que mais largamente concorre para a explicação dos demais: a alienação da cultura, a rarefação intelectual, o relegamento da inteligência pela sociedade brasileira a uma situação de marginalidade; o isolacionismo do trabalhador intelectual; a ausência de objetividade no labor dos intelectuais e dos pesquisadores; a falta de articulação entre as instituições culturais, particularmente a universidade, e o processo de desenvolvimento do país; o artificialismo do sistema de intercâmbio cultural - intra e internacional etc.

  

    Os problemas

     Partindo pois desses dois fatos predominantes - a separação entre a inteligência brasileira e o processo brasileiro, e a falta de representatividade e de solidez de nossas instituições - investigamos:

 

    I - Raízes de nosso processo cultural

     a) Nova interpretação do fenômeno de transplantação cultural, seus processos e conseqüências.

    b) O problema da densidade e da rarefação intelectual.

    c) Uma interpretação de intelligentsia brasileira. Neste capítulo foram feitas rápidas alusões a uma tipologia do intelectual brasileiro, que pretendemos levantar de forma sistemática, em estudo especial.

 

    II - O intelectual e as instituições culturais

     a) O indivíduo contra as instituições.

    b) As instituições contra o indivíduo.

 

     III - Algumas aproximações concretas (decorrentes dos princípios acima formulados)

     1) As instituições básicas da elaboração e transmissão da cultura

        A universidade

        A cultura brasileira, antes e depois da Universidade. Características da Universidade brasileira, inclusive as decorrentes das condições que marcaram as suas origens e o seu desenvolvimento.

         Instituições não-universitárias

        Instituições de pesquisa

        O pesquisador no Brasil

        Instituições de pesquisa existentes no país, e suas atividades

        Outras entidades culturais

 

    2) Política de formação de quadros

       Instituições nacionais e internacionais interessadas no problema

 

    3) Instituições de serviço

        Bibliotecas

        Informação

        Documentação

 

    4) O problema do intercâmbio

        Nova concepção de intercâmbio inter-americano; reformulação do sistema.

        Enquanto não se alcançar uma certa estrutura interna, e mais efetiva institucionalização do trabalho intelectual, não será possível o intercâmbio internacional que se deve produzir como expansão de nossa dinâmica institucional.

        A aproximação cultural não poderá ser o fruto de simples procedimento diplomático, visando a interesses políticos. Autonomia dos interesses culturais. O caminho será o conhecimento recíproco da cultura dos vários países do Continente.

        As instituições promotoras de intercâmbio. Apreciação de suas atividades. Os erros da política oficial.

 

 Súmula dos passos dados na investigação

     I - Campos

 

    A investigação abrangeu os seguintes campos: História, Literatura, Filosofia, Arqueologia, Estudos Clássicos, Economia, Antropologia, Sociologia, Ciências Políticas, Direito, Educação (os dois últimos, acrescentados ao roteiro fornecido pelo American Council of Learned Societies).

 

    II - Organização do trabalho

    a) De conformidade com o procedimento, há pouco assinalado, procuramos estudar ao mesmo tempo, e nas suas últimas implicações, o pesquisador e o intelectual e o seu ambiente.

    b) Escolhemos os principais centros universitários brasileiros, em número de sete, como campo de investigações: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre (Estado do Rio Grande do Sul), Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais), Recife (Estado de Pernambuco), Salvador (Estado da Bahia), Curitiba (Estado do Paraná), Fortaleza (Estado do Ceará). Além desses, visitamos uma pequena Universidade de província, para fixarmos os problemas de um meio universitário de nível mais modesto. Com esse objetivo, visitamos a cidade de João Pessoa (Estado da Paraíba), a 180km do Recife.

    c) Como se verifica no item anterior, adotamos o critério de investigar somente os melhores padrões de trabalho intelectual e universitário no País, forçados a essa medida seletiva pela falta de tempo. O critério adotado nos permite certas inferências, em relação aos meios culturalmente mais carentes, embora a apreciação dos desníveis e da grande diversidade brasileira não possa ser por esta forma rigorosamente apurada. O mesmo critério foi utilizado em relação aos especialistas escolhidos. Empregando o método da entrevista, ouvimos, em cada uma dessas cidades, representantes de todas as especialidades incluídas no roteiro, procurando, na medida do possível e para efeito comparativo, reunir no mesmo campo depoimentos de gerações diferentes. Fizemos, em média, 15 entrevistas em cada uma dessas cidades, além de termos obtido dos entrevistados o preenchimento de um questionário através do qual se pudesse inferir a sua integração na especialidade e seu grau de atualização no conhecimento de fontes especializadas na América Latina, na América do Norte e na Europa, além de outras partes do Mundo. Procuramos tornar essa amostragem a mais extensa e rica possível, mas a exigüidade de tempo não nos permitiu senão um estudo sumário a que não falta objetividade, mas que precisa ser complementado. O que mais importa neste relatório é o empenho de descobrir os fatos mais esclarecedores da nossa organização cultural.

    d) Procuramos, desta forma, conhecer a situação de cada um desses meios culturais, suas carências e problemas, mas também os esforços positivos e as virtualidades, as instituições universitárias, bibliotecas e editoras; condições de formação e aperfeiçoamento de seus professores e pesquisadores, associações culturais e revistas especializadas; possibilidades de intercâmbio; a atuação de instituições estrangeiras, nos vários Estados; a comunicação inter-regional e inter-universitária.

    Sobre as universidades brasileiras, colhemos vasto material e esboçamos uma série de estudos interpretativos que no trabalho aparecem escassamente, pelo meu receio de não incluir nele senão matéria pertinente. Entre outros, estudamos os seguintes problemas, referentes à universidade:

    d1 - Origem e desenvolvimento das Universidades brasileiras. Condições de recrutamento de seus quadros iniciais, qualidade destes, a repercussão no processo universitário das condições do provimento inicial.

    d2 - As três gerações de professores universitários do Brasil. As perspectivas para o futuro; sugestões para a formação da geração verdadeiramente universitária.

    d3 - A comunicação inter-universitária.

    d4 - Política de aperfeiçoamento do pessoal universitário adotada no Brasil.

    d5 - Relações entre a universidade e a cultura brasileira; a absorção e o "acoplamento" que ela realiza dos grandes valores intelectuais do País e dos recursos governamentais para a educação e a pesquisa. Os graves problemas que disto decorrem, se não houver uma política inteligente de aproveitamento do capital humano e dos recursos disponíveis.

    d6 - Relações entre a universidade, de um lado, e de outro, a vida brasileira, a administração pública e privada, a indústria e o processo de desenvolvimento do País.

    d7 - Expansão do ensino superior, erros do sistema adotado, ou a falta de sistema.

    d8 - Os órgãos dirigentes da universidade: a organização democrática, com administração colegiada, que deveria ser, vai-se tornando no Brasil uma instituição autocrática.




2. APRECIAÇÃO DOS ATUAIS CRITÉRIOS DE INTERCÂMBIO
CULTURAL NO PLANO INTERNACIONAL

 

          Os erros

           As relações culturais entre o Brasil e os outros países do Continente são de três tipos:

          a) diretas, entre entidades culturais de diferentes países;

          b) promovidas por órgãos específicos existentes no País. Nesses dois casos o processo se apresenta falho, pelo seu caráter esporádico;

          c) de iniciativa governamental, por vias diplomáticas; só acidentalmente são culturais, dada a preeminência dos interesses políticos, legítimos, mas deslocados, na esfera em que se situam. Os órgãos de promoção e cooperação cultural do Itamarati não chegam a articular-se eficazmente com os interesses das instituições culturais do País.

          Nós fazemos intercâmbio (nós, latino-americanos), mas não comunicação. Esclareço em que sentido tomo os dois conceitos, distinguindo-se devidamente. A comunicação se faz quando a vida nacional, representada pelas suas instituições, realmente a reclama ou possibilita, e na medida de suas carências ou forças. O que se comunica entre nações diferentes são interesses, claramente definidos e expressos, através de uma organização nacional à base de instituições sólidas e nítidas pela sua força de representatividade. A dimensão internacional não é uma construção arbitrária, arquitetada fora dos contextos positivos em que se deve inserir. O internacional é o prolongamento do nacional, o caminho da expansão tomado, naturalmente, pelo fluxo de sua existência concreta, de suas necessidades e de seus interesses. O internacional não se forma como um ente da razão, mas pela dinâmica real, espontânea - no forte sentido desta palavra - da vida de cada povo, ou, mais concretamente, de suas instituições. Donde uma conclusão, a meu ver sociologicamente válida e do mais importante sentido concreto: não se pode fazer intercâmbio cultural eficaz senão na base dessa dinâmica institucional. Precisamos pôr ordem à casa, disciplinar o País, organizá-lo interiormente, institucionalizar os seus interesses - e não multiplicar instituições sem nenhum valor representativo - dentro de pautas como as que procuro apresentar ao longo desse trabalho: organicidade das instituições (o que só pode advir de sua integração no processo brasileiro), escala proporcional aos seus objetivos (pessoal e recursos), trabalho coletivo, em que os esforços individuais e a ação das instituições sejam realmente complementares entre si, em vez de dispersos, coincidentes ou conflitantes. Uma das principais razões da pouca eficácia relativa do intercâmbio cultural entre nós é que ele não é "canalizado", não há - as mais das vezes - órgãos suficientemente representativos e estruturados para terem a consciência de seus objetivos e meios para realizá-los: daí a frouxidão, a dispersão, a fragilidade com que atuam entre nós os vários órgãos de intercâmbio cultural. A isso se acrescente a nossa carência de espírito internacional, assinalada noutro ponto, e teremos um quadro das dificuldades brasileiras para um intercâmbio que seja realmente uma comunicação, uma interfusão, uma complementaridade.

          É preciso, com urgência, proceder à profunda revisão dos critérios de comunicação cultural. Revisão de concepção e de métodos. A política cultural dos países americanos - a que pretende ser mais ambiciosa - tem-se processado em função dos interesses políticos de cada nação e, pois, a reboque de sua política diplomática. Os departamentos diplomáticos têm demonstrado agir de forma acidental, sem situar e hierarquizar os problemas em sua ordem própria; e, por falta de integração à índole e natureza destes, e pelo caráter acessório e adjetivo que lhes atribuem, a sua atuação é superficial e intermitente.

          Esperar produzir o interesse de um país pela cultura de outro, como conseqüência de procedimento e gestões políticas, é admitir, funestamente, uma extrapolação que, normalmente, não se pode verificar. A política de intercâmbio cultural terá de encontrar razões de interesse nos próprios valores culturais de cada país do Continente. Só a convicção quanto ao merecimento intrínseco da produção intelectual de um país é capaz de torná-la apreciável, de forma eficaz e permanente, aos olhos de outros países. Ora, a nossa orientação tem sido outra: a de pretender angariar o apreço cultural para os nossos países como conseqüência da harmonia e da amizade política. O fato é que continuamos a ignorar-nos, solenemente; a subestimar o trabalho e a inteligência uns dos outros, sem os conhecermos e por o não conhecermos. E enquanto não se promoverem os meios de descobrirmos o seu valor real, a necessidade de cotejarmos experiências comuns, o interesse de ajuda mútua e de trabalho comum para enfrentarmos o desafio dos mesmos problemas - não só na ordem econômica, mas também na ordem cultural, tendo em vista a criação de uma civilização do Novo Mundo, baseado no esquema de seus valores vitais próprios, perpetuaremos a situação atual de isolacionismo cultural.

          Ainda em relação à concepção que, a meu ver, deve prevalecer em nossas relações culturais, para torná-las reais e eficazes, julgo particularmente interessante este ponto: a conveniência, senão a necessidade, de construirmos a nossa civilização: 1º) sob a perspectiva das necessidades e interesses comuns; 2º) num sentido novo, correspondente à realidade nova que, por menos que disto tome consciência, é a América. Uma civilização talvez mais vitalista que intelectualista no sentido da tradição européia. Só descobrindo - e neles confiando - esses valores vitais próprios, estaremos preparando caminho para a elaboração de uma cultura que não tema ser americana, moldada em nossas experiências afins, com um viço de criatividade e de originalidade que o desafio do mundo novo é capaz de dar-lhe; que nos encorajará, enfim, a não sermos apenas caudatários da cultura européia. Com esta temos de comum a "alma" no sentido que neste caso lhe dá um Malraux; mas é preciso não perder de vista a aventura que estamos realizando. A Europa está bloqueada por certas cristalizações tradicionais e inarredáveis, e a sua cultura intelectual se vem processando a modo duma longa ruminação, de reformulação de velhas idéias, sem uma clareira de espaço virgem, através da qual se possa erigir a imagem do homem novo e da nova civilização.

          Isto, quanto à concepção. No que se refere aos métodos, utilizados para a difusão e o prestígio de nossa cultura nos demais países, o menos que se pode dizer é que são, na maioria dos casos, inócuos. Estão errados nos seus propósitos e carentes de meios adequados de eficiência. Muitos desses serviços culturais se dedicam ao ensino da língua e da literatura brasileira, quando há necessidade de um procedimento mais fecundo que, felizmente, já se introduziu, por exemplo, no Instituto de Nova York: estudos globais de nossa civilização, dirigidos por pessoas de alta experiência que não se restrinjam aos interesses de sua especialidade e se situem em problemas centrais. Por outro lado, faltam, de modo geral, a esses serviços, as condições mínimas de eficiência, particularmente instrumentos de trabalho: livros, revistas, material de informação e documentação.

          Passemos aos fatos:

          a) do intercâmbio promovido por órgãos diplomáticos e políticos, que já mencionamos, voltaremos a tratar no estudo das ciências sociais no Brasil;

          b) quanto às instituições destinadas, especificamente, ao intercâmbio, destacam-se a CAPES, pelo que faz, pela seriedade e método com que trabalha, apesar da escassez de recursos e de certos critérios discutíveis; e o IBBD, pelo tipo de organização que idealizou mas que só escassamente está realizando. Seriam instituições básicas, destinadas, com a ampliação de seus recursos e de suas tarefas, a figurar num sistema novo de intercâmbio. Em nenhuma outra encontrei, a rigor, uma política de planificação;

          c) enfim, o intercâmbio direto das partes interessadas: no domínio que abrangeu a nossa pesquisa, poderíamos estabelecer ligeira síntese, a ser apurada e complementada, das minhas impressões.

          Em primeiro lugar, é preciso distinguir instituições universitárias e não-universitárias.

          As universidades e os seus institutos mantém um intercâmbio reduzidíssimo e bastante improdutivo:

          a) pelo seu caráter esporádico, sem repercussão na vida universitária;

          b) pelos erros de método: o costumeiro sistema de conferências, por exemplo, que é o mais freqüente meio de comunicação entre professores de diferentes universidades, é, obviamente, bastante precário, particularmente nas condições em que se realiza, sem a devida atenção para o recrutamento e a preparação do auditório;

          c) pelas dificuldades, às vezes intransponíveis, criadas pela direção de universidades e faculdades ao intercâmbio cultural. Dificuldades de saírem os professores locais e de virem professores estrangeiros ou de outras universidades do país; pela indiferença ou, noutros casos, a má orientação dos reitores em relação à qualidade cultural das universidades. Neste ponto contentam-se com a rotina, enquanto se mostram empreendedores e arrojados na tarefa de criar novas escolas e institutos, de construir e instalar prédios;

          d) pelos entraves do próprio sistema universitário atual: obstáculos de ordem burocrática, para a substituição de professores que venham a ausentar-se temporariamente em viagem de estudos ou de intercâmbio; e o contrato de professor ou pesquisador de fora. Há também, embora mais raramente, uma certa desconfiança do meio universitário em relação ao bolsista, que se julga fazer turismo às custas do erário público, o que suponho decorrer de certos precedentes que justificariam a desconfiança;

          e) não há recursos para que os professores participem de congressos e simpósios, mesmo nacionais - e sobre isto ouvi queixas repetidas.

          Como se vê, um dos problemas básicos da universidade - e eu direi, sem alarmismo, da cultura brasileira - é, como antes assinalei, a política de distribuição dos recursos destinados a instituições universitárias, e os seus critérios de aplicação. Refletem estes, no nosso caso, numa mentalidade em atraso, desligada dos avanços reais já esperados no seio da própria universidade, e gerando um descontentamento profundo nos professores - o que, só por si, já constituiria um óbice muito grave à vida universitária. O cesarismo dos reitores que, inclusive, fazem da política de distribuição desses recursos a sua própria política de perpetuação no cargo, constitui um entrave bastante sério para o sistema, em conjunto e, no caso, para o intercâmbio. Pois, se aqui defendo o princípio de que o intercâmbio é um processo que só se torna eficaz como uma ligação entre instituições, como expansão livre de seu processo operacional, um processo à base das atividades das próprias instituições, com possibilidade de saberem o que querem e de terem os meios para cobrirem as suas deficiências, então, a organização autocrática em que se transformou a universidade representa o mais sério empecilho à comunicação e ao intercâmbio cultural. A vida universitária, dessa forma, não é um sistema de forças que se manifestem espontaneamente pelo jogo livre dos fatores em presença, que assim naturalmente se hierarquizam; o que tem valor na universidade não é o que tem significação para ela como instituição, refletindo as suas genuínas virtualidades; o que adquire prestígio é o que é sacramentado pela vontade cesárica de seus dirigentes ou a vontade maquiavélica dos grupos que dela se apropriaram - indebitamente, "ça va sans dire". Trata-se duma subversão no sistema de valores da universidade. Não se pode dizer, como certo professor de filosofia em conversa comigo, que nada se alterará na universidade senão como resultado de novos contextos sociais. É preciso distinguir. Certas características essenciais, encontradas no correr deste trabalho, dependem do sistema social. Mas há outras que poderiam ser corrigidas, ou atenuadas, sobretudo pela ação consciente dos professores, cabendo a liderança da solução aos que mais agudamente sentem o problema.

          Deve este grupo aproximar a universidade da sociedade, onde o seu papel de liderança é quase insubstituível. Não pode ela deixar de assumir, com urgência, o seu papel ao lado de outras forças de liderança no seio da sociedade. Nas condições atuais, nenhuma instituição terá as condições da universidade, desde que seja posta em comunhão com o povo, de fazer a liderança coincidir com a influência de elites autênticas.

          A liderança possui dois aspectos dialeticamente complementares: a similaridade com os liderados, que lhe dá representatividade e autenticidade democrática; e a dissimilaridade, que cria para o povo focos de polarização capazes de levá-lo a superar-se a si mesmo, constantemente.

          Ora, a universidade estaria, depois da sua conversão democrática e da sua revitalização, singularmente dotada para essa dialética, em que, ao mesmo tempo, se adapta - função metabólica - e se insurge contra a estagnação - função catabólica. A função do líder não é só conformar-se, é propor um projeto que, em vez de abstrato, seja ao mesmo tempo vitalmente encarnado no seio do grupo e motor da realização autêntica ou da substituição de seus ideais. Creio que aí se situa a universidade, do ponto de vista sociológico.

          Quanto à conversão democrática da universidade, teremos ocasião de falar ao longo destas páginas.

 

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