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Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil


Registra as tendências sinalizadas por atores no passado e no presente:
a Escola Nova com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira
e o espectro contemporâneo, com destaque para a
pedagogia crítico-social dos conteúdos.

 

A Escola Nova e seus protagonistas

           A meu ver, a Escola Nova, na Europa e nos Estados Unidos, era um epifenômeno cultural, embora alguns pedagogos, inclusive os Pioneiros de 1932, não tenham percebido a malha complexa dessa doutrina. Sabe-se que os pioneiros da Escola Nova, no Brasil, utilizaram primordialmente os métodos, transpostos dos Estados Unidos, e menos o conteúdo. Entretanto, não só os Estados Unidos, mas também países europeus aglutinam, bem ou mal, conteúdos e métodos. Mas alguns críticos brasileiros da Escola Nova omitem totalmente esse aspecto, sobretudo as diferenciações entre o Brasil e os outros países quanto às origens geográficas e, principalmente, culturais.

          Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira marcaram o divisor de águas em relação à Escola Tradicional, no sentido preciso: organizam as vigências culturais do passado e do presente, no Brasil, desde a Revolução de 30, expressas sobretudo no Manifesto dos Pioneiros, até a década de 60. Percebe-se nesse documento a separação entre a educação, de um lado, e a economia e a política de outro. A educação não está problematizada no País - está submersa, ou quase imóvel frente às modificações sociais -, ao passo que a economia e a política são problematizadas. Um dos truques da educação não-problematizada consiste na Escola Nova no Brasil: ela não mexe no conteúdo (transformações sociais via educação) e sim nos métodos e técnicas. Ou melhor, os conteúdos existem, mas freqüentemente embutidos do exterior para o Brasil, lubrificados pelos métodos e técnicas, destinados, sobretudo, à industrialização e à modernização. Por isso, o Estado não tem projeto político, precisamente por ser país dependente, condicionado pelos centros hegemônicos no plano político e econômico, enquanto que, no plano cultural e pedagógico, a intelligentsia se contenta com os modelos europeus e norte-americanos como uma das formas de alienação. Mas, paradoxalmente, a Escola Nova e a Escola Tradicional, com visadas opostas, confluem em alienação, isto é, a separação entre duas instâncias.

          Gostaria de assinalar as diferenças entre os principais protagonistas da Escola Nova. Anísio Teixeira era educador, pensador, com lastro filosófico às vezes lacunoso, precisamente pelo precário nexo entre o pragmatismo e outras tendências, não só nos Estados Unidos, mas sobretudo na Europa (a não ser algumas vertentes na Inglaterra). Por exemplo, ele era seduzido, ao mesmo tempo, pela concepção de Dewey e pela de Whitehead, bastante diferentes, e que não foram articuladas. Fernando de Azevedo, educador, reformador do ensino, erudito ambicioso, às vezes resvalava para a incongruência, por exemplo, ao associar, de um lado, o racionalismo cartesiano e o iluminismo kantiano e, de outro, o positivismo durkheimiano e a escola socialista, convivendo com Dewey e outros protagonistas da Escola Nova. Entretanto, e mesmo sem maior originalidade, talvez a melhor obra de Fernando de Azevedo esteja na Sociologia Educacional, nessa área regida pela concepção de Durkheim. Destaco também o grande empreendimento de Fernando, isto é, o inquérito promovido pelo O Estado de São Paulo (1926) e publicado em Educação na encruzilhada , com os mesmos problemas de hoje, embora com outros ângulos novos, desvanecendo a bruma que sua ideologia fez. Outro livro é A cultura brasileira , rico repertório de dados e fatos relevantes na análise historiográfica; o que lhe falta é, precisamente, o significado dos próprios problemas na sua interpretação vertical, das estruturas políticas, culturais e econômicas. Quanto a Lourenço Filho, é um pedagogo, organizador do ensino e administrador capaz e exigente, tentando articular a pedagogia com a psicologia, no mesmo diapasão da Escola Nova. Em relação a Fernando de Azevedo, é significativo o retorno da Ilustração, que norteia, em grande parte, a concepção da USP em 1934. Iluminismo e idealismo autoritário, através das metamorfoses históricas desde o século XVIII.

          Esses pensadores difundem o saber (cultura e educação) para o povo, de cima para baixo, segundo o código hegemônico das classes dominantes; mas eles têm uma tarefa, naquela época, cuja organicidade era eficaz numa sociedade de classes. Hoje, há a distorção da Ilustração para a racionalidade, vagamente weberiana, estipulando o critério de qualidade do ensino sob o nome de "meritocracia" e "excelência", extremamente ambíguo, pois esse postulado, inscrito nas leis e planos educacionais, se desfaz ingênua ou perversamente na prática. Na verdade, a perversão consiste, precisamente, na homogeneização do saber, para encobrir, na sociedade de classes, os valores e os signos cindidos entre as classes subalternas e as elites políticas, econômicas e culturais.

          Esse assunto, atualmente em voga, deve ser aprofundado:

          1º) O Manifesto dos Pioneiros não postula um modelo político e econômico explícito no Brasil. O Governo de Getúlio Vargas utiliza o documento como meio (todo mundo sabe que esse trabalho incorporou ingredientes da Escola Nova), mas não como fim (político). Em termos históricos e epistemológicos, existe incongruência entre a Escola Nova (experiência, pesquisa, invenção, criatividade, descoberta) e o modelo político, isto é, a organização social autoritária do Estado, que inibe a iniciativa baseada na Escola Nova, no plano da educação e no plano social.

          2º) A Escola Nova é, às vezes, ambígua, pois, de um lado, encoraja e corporifica os postulados já referidos e, de outro, serve para funcionar em todos os regimes políticos e econômicos, desde que haja a ideologia liberal, como é o caso dos Estados Unidos e de alguns países europeus, ou seja, ela não tem compromisso político explícito. Isto ocorre não só com a Escola Nova, mas também com a maioria das doutrinas pedagógicas nas democracias liberais ocidentais. (Insisto e alerto para que não se incida na incongruência: o truque, a astúcia estipulada pelo Estado Novo consiste em ocultar a contradição, na Escola Nova, entre a ideologia liberal desses países e o regime fascista brasileiro: pesquisa, criatividade, descoberta, etc., eram manipulados.) Só os regimes socializantes democráticos procuram articular eficazmente o político, o econômico e o pedagógico; mais profundamente, articular a subjetividade e a objetividade incorporadas no trabalho e na práxis. Uma das razões restritivas à análise de alguns estudiosos da educação, apesar do respeito a eles pela sua contribuição valiosa, é que não integram a escola e o trabalho, a sociedade de classes e o regime político, concretamente, no Brasil. Conteúdo, método e compromisso político planam no abstrato. Obviamente, seria ilusão preconizar o regime socializante na atual conjectura brasileira. O importante é uma crítica consistente da sociedade de classes e uma proposta política e pedagógica.

          3º) A Escola Nova apropria fragmentos da experiência sem articulá-los coerentemente. O pragmatismo de Dewey não tem um fio condutor da conjuntura social e histórica; no seu liberalismo, estabelece ajustes e reajustes espontâneos, como faz a economia capitalista, contornando a sociedade de classes. Ao contrário disso, o currículo de ensino deve estabelecer a articulação e a coerência dos conteúdos antigos e novos, na medida da continuidade e da transformação social.

          Ainda a posição dos três educadores: Lourenço Filho integra a Escola Nova com o Estado Novo; Fernando de Azevedo, vacilante, justifica o Governo de 1937: "a política adotada pelo Governo da União julgou poder fazer a economia do conflito nesse [educação] e em outros domínios, pelo conhecimento e pelo equilíbrio das forças antagônicas". Quanto a Anísio Teixeira, fulminado pelo arbítrio fascista, em 1935, como Diretor Geral da Instrução Pública no então Distrito Federal, só regressou à administração pública depois da ditadura.

          Anísio Teixeira fez propostas e análises pioneiras, nessa época. Sua investigação injeta, produtivamente, nas instituições, uma criada por ele, a Universidade, e outra, a reforma do ensino no então Distrito Federal; no fundo, com maior rigor, está sempre ancorado pelo pragmatismo primordialmente norte-americano, sobretudo pela reconstrução da experiência individual e social. Entretanto, é complicada a postura de Anísio, sobretudo revelada pela diferença entre a ideologia deweiana e a sua visão crítica do Brasil. Não há o descolamento mecânico entre o conteúdo norte-americano e os métodos transpostos de lá para o Brasil. Ele estava interessado no conteúdo (como também Fernando de Azevedo) e no método, nas matérias de ensino e na aplicação, ilustradas, por exemplo (no caso de Anísio), no Instituto de Educação. Esse assunto está fartamente documentado, mas alguns estudiosos o criticam e, ao mesmo tempo, o desconhecem.

          Quanto aos problemas do conteúdo e método, este trabalho traça, apenas, sinteticamente, alguns aspectos essenciais. Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, embora com paradigmas diferentes, apropriam a concepção pragmatista da educação; seria o estado-maior, com seus aliados, que comanda a infantaria. O grave, entretanto, é que a apropriação, a germinação, a capilaridade, em termos históricos e sociológicos, não aconteceram. A infantaria não incorporou sua concepção; uma vertente, bastante vincada na cultura brasileira, não tem o ritmo da germinação, atropelado pelos modelos estrangeiros e mesmo pelos do nosso País. Categorias e método se transformam em estereótipos. A concepção da Escola Nova está esgarçada e fragmentada, espelhada no território nacional, acionada pelos gestores do Ministério da Educação e das Secretarias de Educação. Mas as outras concepções se processam, atualmente, quase sempre, com o mesmo estilo de pensar e de fazer.

          Entretanto, volto a afirmar: o conteúdo da Escola Nova é precário, salvo apenas pela contribuição desses dois protagonistas que, em certa medida, o superaram. A parte positiva da Escola Nova contém o projeto, a experiência, a criatividade, a interrogação e a problematização; a parte negativa, a rota de reconstrução da experiência individual e social, política e econômica dentro da contradição, isto é, a homogeneidade falsa e a heterogeneidade real, na qual o inconsciente ideológico encobre a sociedade de classes, a despeito do empenho de Anísio e Fernando em situarem a escola única como instrumento de justiça social.

  

Tendências atuais da educação brasileira

           Há o risco, no Brasil, quanto ao comportamento de analistas e estudiosos, de utilizar categorias do pensamento dialético ou do pensamento funcionalista, ou estruturalista, ou quaisquer correntes, afastadas da situação brasileira. Nesse caso, há justaposição ou descolamento entre as fontes, especialmente estrangeiras, e a conjuntura brasileira. Esse mimetismo cultural está analisado em alguns textos meus. Entretanto, se trata de algo mais profundo. O Estado brasileiro, sobretudo o Governo, não formula uma proposta clara sobre a educação na sociedade de classes, configurada a formação social encravada, historicamente, no capitalismo brasileiro.

          O Governo evita, deliberadamente, o projeto político e pedagógico, já que os países hegemônicos, por exemplo, os Estados Unidos, influem, explícita ou implicitamente, na educação brasileira, isto é, num país dependente. O plano educacional está marcado também por influências de outros países europeus como a França, com raízes antigas, agora rejuvenescidas no Brasil. Entretanto, em termos analíticos, pode-se perceber a evidência de diferentes dimensões (política, econômica, cultural e pedagógica), as quais são isoladas, no País, sob a forma de justaposição. Por que isso ocorre e qual a razão da presença de elementos heteróclitos no conhecimento? Precisamente pela falta de integração nesse projeto brasileiro. Aliás, pode-se admitir aqui a distinção entre justaposição e superposição: aquela seria a colagem de peças desajustadas na superfície, e esta seria a separação da estrutura e da superestrutura, sem corte vertical entre elas, isto é, sem um tecido urdido e articulado. Por isso mesmo, instâncias isoladas e, portanto, reificadas. Só existirá o significado/significante quando houver a complementaridade dialética das duas instâncias.

          Mas é preciso alertar seriamente quanto ao efeito complicador: o projeto individual nas instituições (por exemplo, de um educador, filósofo ou cientista) e os projetos do Governo que, por hipótese, convergiriam num projeto brasileiro. Ora, o que há são os dois mecanismos de justaposição e superposição no plano individual e no plano do Estado. Por exemplo, a maioria dos pedagogos, ou filósofos, cientistas sociais e psicólogos da educação utilizam alguns modelos, como Marx, Gramsci, Establet, Bourdieu e Passeron, Weber, os pensadores da Escola de Frankfurt, os positivistas contemporâneos, alguns estruturalistas franceses, estudiosos da análise institucional, Piaget, Dewey, Rogers, Skinner, os existencialistas etc. É um projeto acadêmico individual ou institucional (sobretudo na universidade), e do próprio Governo, o qual induz, raras vezes, ao próprio projeto acadêmico, desde que haja cautela do pensamento crítico frente à ortodoxia governamental, quanto à execução. Mesmo assim, é difícil estabelecer a divisão de águas no pensamento do Estado, no qual se mescla a visão liberal e a normatividade tecnocrática (com ou sem planos), o consenso (funcionalista) no desencontro das classes, e a visão economicista do "capital humano", barrada pela visão crítica, histórica, dialética.

          Há também pedagogos sem lastro filosófico e científico, que pretendem, engenhosamente ou não, compor elementos dispersos e desestruturados em relação à sociologia, economia, filosofia etc. (A Lei nº 5692/71) é um exemplo de justaposição; igualmente, os planos de desenvolvimento, aliás desarticulados quanto aos planos setoriais como a educação e a cultura.) Nesse caso, o projeto individual acadêmico se converte em projeto inscrito no Governo, mas já sabendo que o Governo não o utilizará. Entretanto, faço algumas observações que me parecem básicas:

          a) Assinalo a justaposição e a distância entre o projeto e o Governo. A meu ver, o Governo, através da intelligentsia tecnocrática, ignora esse projeto acadêmico, e este, por sua vez, o ignora. Duas distâncias simétricas. E uma das razões do projeto acadêmico consiste em apropriação equivocada dos modelos mencionados. Há um tipo de alienação, na qual alguns estudiosos se julgam articulados com o pensamento e a ação no Brasil. Na verdade, esses analistas fazem o discurso sobre e não de. Isto é, o discurso especulativo e abstrato sobre, e não o discurso operante, integrado no conhecimento e na práxis. (Por exemplo, estudiosos que se consideram dialéticos fazem o discurso sobre a dialética, e não da dialética materializada pelas estruturas sociais.) As análises de alguns professores e estudiosos de importantes universidades, ao discutir educação, se prendem mais a conceitos e formas um tanto esquemáticas de compreender as relações sociedade-educação, distanciadas dos fatos, atores e processos que fizeram a educação brasileira.

          Para superar justaposição e superposição, é indispensável: 1) pesquisar os fatos e os dados, elucidados pela teoria brasileira no sentido preciso. Aparentemente, não existe uma teoria brasileira, segundo alguns estudiosos; seja em termos filosóficos, epistemológicos e históricos, é preciso estabelecer categorias apropriadas, elaboradas por pensadores e cientistas em todos os países e culturas diferentes - inclusive, obviamente, o Brasil; 2) focalizar estilos e regimes políticos e ideológicos. Quando falo do discurso sobre e não de, já assinalado, no âmbito da filosofia e das ciências humanas, alguns dialéticos brasileiros fazem exatamente isto: a distância (não metodológica, mas alheada), do foco do poder, interseccionado pelas instâncias do saber, subentendida a visão acadêmica e política.

          A despeito dos modelos, alguns estudiosos estão presentes na conjuntura brasileira através das suas pesquisas empírico-teóricas, algumas vezes valiosas. Entretanto, pode-se perceber (e, nesse caso, seria interessante estabelecer a mecânica do saber nesses analistas) certo hibridismo entre o empírico ou factual (objetividade) e o teórico, direta ou indiretamente atrelado aos modelos já assinalados. Seria justaposição ou cisão. Sabe-se muito bem a distinção entre o empírico e o concreto; nesse caso, o concreto, ou a totalidade concreta, supera esses dois mecanismos.

          Curiosa a analogia entre modelos e personagens antigos - no caso, por exemplo, Anísio Teixeira ou Fernando de Azevedo - e os novos. Continuam as justaposições no passado e no presente, e uma das razões justificadas pela sociologia da cultura reside na falta de invenção e descoberta, na práxis e teoria brasileira, entrelaçadas com as outras culturas estrangeiras.

          Entretanto, analistas e pensadores brasileiros procuram articular criticamente o pensamento autóctone e outras fontes fora do País. Pesquisadores realizam trabalhos sérios e produtivos a despeito da indiferença governamental, aliás, examinada em outros textos meus, pela estratégia de planos e leis, estas, oriundas primordialmente do Executivo acionado pelos tecnocratas. Há um paradoxo (aparente), manifestado pela presença dos pesquisadores ou centro de pesquisa no próprio Governo. O que se poderia esclarecer, em parte, seria o desvio tecnocrático e o compartimentismo, abordados no meu texto "Desenvolvimento, tecnocracia e universidade", e a política da pesquisa educacional, que tento elucidar em "Indicações para uma política da pesquisa da educação no Brasil".

          Atualmente, na percepção de alguns críticos da Escola Nova, sobretudo os teóricos da pedagogia crítico-social dos conteúdos, estariam cortadas abruptamente as raízes culturais e históricas. Essas raízes provêm do Iluminismo e, depois, do idealismo autoritário, através das metamorfoses históricas, desde o século XVIII.

          Seria o roteiro das tendências nos séculos XVII, XVIII, XIX e início deste: o Racionalismo; o Iluminismo; o centralismo doutrinário, através dos intelectuais e dos professores, estabelecido pelo código hegemônico do saber; o Iluminismo retardatário da cultura dependente; a pedagogia de Herbart; a elite e o povo. Em contrapartida, o Romantismo (aliás, um dos veios do próprio Romantismo), contra o Racionalismo e o Cientificismo; o Pragmatismo de William James e de Dewey; o Intuicionismo de Bergson (para ele, a durée é alteração); o Historicismo de Croce e o Vitalismo de Ortega; Freud, Nietzsche, os existencialistas nas décadas de 40 e 50; Rousseau revivido, quanto à "educação negativa", um dos precursores remotos da educação não-diretiva. (Obviamente, a importância de Rousseau está no plano social e político, articulado com a educação, sobretudo no Emílio). Então, emerge a Escola Nova na Europa e nos Estados Unidos, como epifenômeno da cultura e da história.

          Entretanto, numa das vertentes atuais do pensamento educacional no Brasil, discípulos e seguidores de Gramsci, segundo sua própria estratégia, rente à conjuntura política e cultural na Itália, são paradoxalmente especulativos e abstratos, sem se aterem, concretamente, à conjuntura brasileira. Na escola tradicional, o método de conservar não leva ao método de inovar, operativamente, de criar conteúdos novos, correspondendo aos valores emergentes na cultura e nas ciências, sobretudo nas ciências humanas.

          Por isso, persiste o risco do comportamento do professor. O professor se erige em instância do conhecimento e do saber, e o aluno, mesmo assimilando o saber fornecido pelo professor, não consegue criar o conhecimento; a adaptação apenas do paradigma do saber constituído pelo professor, e não constituinte, em relação ao professor, ao aluno e ao cidadão.

          A despeito da contribuição de alguns protagonistas da pedagogia crítico-social dos conteúdos, seus argumentos não são convincentes. Respeitando a importância de sua análise, persistem aspectos questionáveis e, às vezes, ambíguos. Por exemplo, não há dialética, ao contrário: primeiro, o domínio do conteúdo (mas qual o significado dos conteúdos? qual o conteúdo político, cultural e ideológico do próprio professor?), em seguida, há reapropriação dos processos do trabalho docente. Só depois, a partir dessa base, uma visão mais crítica dessa escola e dos conteúdos. Ora, a criticidade está sempre percorrida pelo trabalho docente, já à primeira hora, e não a reapropriação do saber através da transmissão. Existe o risco real, sobretudo pela ambivalência: qual é o momento e a instância de transmissão e de ruptura? Quanto ao conteúdo, ele secreta o método e a técnica; epistemologicamente, entretanto, os dois se fundem, explícita e formuladamente; além disso, esses argumentos não conseguem integrar esses dois elementos com o conteúdo político, pois todo saber e poder obedece a trâmites e compromissos, pressupostos e instâncias, na escola e fora dela, o Estado, o regime político, o rumo da escola - diretores, supervisores, orientadores, professores, os alunos - os quais estão submersos às opções política, cultural e econômica. Sem isso, a escola, demiúrgica, estaria desgarrada do ecúmeno social e político.

          Talvez, e aparentemente, essas opções se contraponham ao dogmatismo pedagógico, na concepção de Gramsci. A verdade, entretanto, é outra. Sua visão é mais profunda: sua estratégia é histórica e política; sua epistemologia compõe elementos da cultura e do ensino, segundo o itinerário ascendente e dialético do saber, integrando a lógica formal com o pluralismo dos valores culturais e políticos, dentro e fora da escola, através da lógica dialética. Mesmo assim, respeitando a concepção vasta de Gramsci, algumas vezes minhas colocações são diferentes e faço restrição ao dogmatismo pedagógico, incompatível com a sua própria dialética.

          Outros teóricos da pedagogia crítico-social dos conteúdos fornecem, paradoxalmente, argumentos abstratos e a-dialéticos: os conteúdos, transmitidos pelos professores, que possibilitam o acesso às classes populares. Esse enunciado é mágico, superposto à conjuntura brasileira, à sociedade de classes, ao regime político e econômico, à dominação do Estado, aos responsáveis pela escola pública e particular.

          Na verdade, a contradição entre as classes dominantes e as classes subalternas está também no conteúdo, dependente, pois, de uma formação social e historicamente definida. O homogêneo/heterogêneo e a hegemonia política apropriam o saber, isto é, o recorte do conhecimento, vinculado aos objetivos e valores políticos, culturais e econômicos. Depois de instalado o saber, consolidado o establishment capitalista, o saber que instrumenta o poder, e vice-versa, desaparece a revolução burguesa, o iluminismo e o racionalismo dos fins e valores, para estabelecer a racionalidade e o domínio dos meios, que, fetichizados, se convertem em decisões políticas do Estado e das classes dominantes. E esse pensamento organizatório contém o estruturalismo a-histórico, no plano primordialmente do saber, e a tecnocracia, principalmente do poder. Para inverter de baixo para cima, é preciso uma estratégia política e técnica, na qual a prática popular se articule com os intelectuais.

          Realmente, as camadas populares deixaram de incorporar a convicção que as elites dominantes lhes transmitiram - e elas acabaram por internalizar - da imutabilidade da ordem (física e social) que as degrada. Donde o corte transversal da sociedade de classes, costurada pela ideologia liberal. O trabalho, no sentido genérico, constrói a polis e, ao mesmo tempo, é marginalizado na despossessão quanto aos valores do trabalho, da cidadania e da cultura. Entretanto, em vez da fixidez, do Quadro de Quesnay, há a transição dialética da conservação para a mudança, de baixo para cima, da homogeneização para a heterogeneidade e vice-versa, com mecanismos apropriados na síntese superadora.

          Apesar da contribuição importante dos pedagogos brasileiros ligados à teoria crítico-social dos conteúdos, as falhas fundamentais dessa teoria correspondem precisamente aos seus principais critérios norteadores, isto é, à função e ao papel do educador, à especificação do ato pedagógico e à relativa independência da escola face a sociedade. Além disso, considero rígida a distinção entre a Escola Tradicional e a Escola Nova. A parte positiva desta última consiste na diferença como categoria do saber, isto é, o outro, o projeto, a interrogação, a criatividade, a experiência, a problematização. Atualmente, se revela o pensamento organizatório de uma vertente poderosa da cultura ocidental, precisamente para achatar a diferença. É a ideologia que corrói o conteúdo, substituído pela racionalidade técnica. Quanto ao problema das discriminações sociais, poderia ser aprofundada a análise: a rota de reconstrução da experiência individual e social contrapõe-se à rota da conjuntura social, política e econômica dentro da contradição, isto é, a homogeneidade falsa e a heterogeneidade real, na qual o inconsciente ideológico encobre a discriminação social. É a parte negativa da Escola Nova.

          Quanto à escola tradicional, constitui um equívoco em relação à modificação, realizada da "tradição antiga" para o nexo escola-vida, nutrida de noções concretas, através do interior da personalidade. A civilização moderna não corresponde ao quadro de Gramsci, sobretudo transposto na cultura contemporânea e polêmica.

          Gostaria de enfatizar o problema da homogeneidade e fazer algumas considerações. No Brasil existem vertentes bastante separadas, os intelectuais e os tecnocratas, aqueles inseridos na sociedade civil, e estes albergados no poder do Estado, sem a ponte entre os protagonistas pela qual se alcançaria o projeto político e social. Ora, o intelectual tem como uma das funções principais atar vertentes no saber e no poder, na sociedade e na cultura. E o processo dialético se faz homogeneizante e ao mesmo tempo heterogeneizante na dimensão da sociedade histórica. A democracia moderna encerra, entre outras categorias, a sociedade constituída e a contradição, a "consciência real" e a "consciência possível", e mais, o contínuo e o descontínuo, a unidade e a diversidade, o pluralismo, a diferença, a singularidade e as temporalidades simultâneas. Eu distinguiria a visão historicista, que é maciçamente homogênea (susceptível de ser questionada em relação a Gramsci), da visão historializadora, precisamente pela mediação que articula as categorias aqui referidas, estabelecendo então o movimento de transição do passado para o presente. A transição, nesse caso, tem um mínimo de organicidade, a qual, entretanto, contém mudanças historicamente qualitativas, reveladas pelo contraponto dialético. Por isso Lévi-Strauss é coerente na sua concepção, definindo a sincronia e a diacronia, sucessivamente, sem historicidade, enquanto que a minha concepção se pauta por outro horizonte, o dialético.

          Quanto às mutações referidas, corresponderiam, em parte, aos conteúdos vivos e aos conteúdos reificados na transição dialética. Para explicitar esse tema, o tempo e o espaço sociais correspondem à conjuntura orgânica cuja potencialidade está ainda explorada na formação social, na qual, entretanto, se instala a contradição. Ela contém negatividade, que significa, ao mesmo tempo, o conteúdo objetivado e o conteúdo incoativo e virtual. Outro ângulo de homogeneização seria o de que a ciência não é burguesa na sociedade de classes, mas logo depois, com o saber, tendencialmente instrumentalizada, codificada, integrada, homogeneizada no plano cultural, político e econômico, através da ideologia. Entretanto, a própria ciência (sobretudo, obviamente, as ciências humanas) emerge das condições possíveis na formação social e histórica, revelada e mobilizada, implícita ou explicitamente, na práxis e na teoria, pela transformação social. Estabelece, então, o nexo de homogeneização (a sincronia aparente, já que, ao contrário, há temporalidades simultaneamente diferentes, embora elas existam, às vezes embutidas, com homogeneização relativa, orgânica, na sociedade constituída) e heterogeneização na contradição explícita através da síntese dialética, sempre refeita e superada, procurando articular a paideia e a politheia, a cultura e o poder.

          O problema da homogeneização deve ser ainda mais aclarado. A meu ver, a homogeneização significa o conteúdo devidamente apropriado pelo tempo e espaço social - aliás, tempos e espaços sociais, convergindo, dialeticamente, para a direção da unidade e da diversidade. Por exemplo, a escola básica para os alunos do 1º e 2º graus é o enunciado não só do Ministério da Educação, mas também das lideranças democráticas empenhadas na educação. Mas é preciso distinguir os primeiros graus do ensino e os outros, superiores, já que estes se amplificam e diversificam quanto não só às áreas de conhecimento, mas também quanto ao pluralismo e à heterogeneidade. Aliás, sobre a escola básica, esse enunciado precisa ser nuançado. Primeiro, é pertinente a definição, estipulada pelo documento do Ministério da Educação, sob o título Educação para Todos - Caminho para Mudança: "A educação básica é aqui entendida como aquela que venha a possibilitar a leitura, a escrita e a compreensão da língua nacional, o domínio dos símbolos e operações matemáticas básicas, bem como o domínio dos códigos sociais e outras informações indispensáveis ao posicionamento crítico do indivíduo face à sua realidade".

          Segundo, o sistema educacional brasileiro pretende uniformizar, a ordem é homogeneizar o saber, imposta pelas classes dominantes. A estratégia perversa desse saber consiste em dissolver o conteúdo, não só o saber através das matérias escolares, mas também os grupos, as instituições, a diferença entre as classes e os movimentos sociais. Simplificar, uniformizar é perder a substância e a diferença, como se fosse um só estômago, ignorando os estômagos diferentes, pois cada um tem o seu. Estômago fascista, ditadura do saber.

          Em termos pedagógicos e filosóficos, o conteúdo significa a substância do objeto significante pelo sujeito; e o método, neste caso, significa o conteúdo estruturado e coerente. Aliás, tento definir esse problema com sugestões aproximativas, por exemplo: o conteúdo é o concreto atravessado pela abstração que o elucida, elaborado pela consciência intencional e histórica; ou o conteúdo é a totalidade concreta de dados na Natureza, os quais o homem estrutura na História e na Cultura através do sujeito e do objeto, as coisas apropriadas pelo valor e pela linguagem (o signo - significado/significante) e os símbolos.

          Alguns educadores brasileiros às vezes incorrem em equívoco, em termos históricos e epistemológicos, quanto ao problema do conteúdo na escola. Acho muito limitada sua análise, primeiro, confinada à escola (sobretudo a Escola Tradicional e a Escola Nova, cuja tipologia é um tanto artificiosa), numa postura primordialmente pedagógica, mesclada, às vezes, com psicologia; segundo - mais importante ainda -, afastada das verdadeiras dimensões do conteúdo em termos filosóficos. É claro que os conteúdos são fundamentais no ensino e na cultura, na escola e também fora dela; mas, no fundo, o conteúdo é ontológico e histórico, bem como cultural, social e político.

Durmeval Trigueiro Mendes
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.
Brasília, v. 68, n. 160, p. 493-506, set./dez/1987.