1972 - A carroça e o avião: pensamento voa, enquanto a palavra difícil

 1972 - O ler precisa crescentemente: metodico, dia a dia etc. Se antimetodico, umas vezes eu neglencia, outras vezes, exagero, ou ainda, dosagem, isto é, quantidade, sempre igual, é errado: crescente, dinamismo etc.

 22/1/73 - Eu iniciei a pintura, mas Dudu e Paulo, atrasado no café, assistiam o quadro em elaboração. Entretanto, eu me constrangi: não gosto da platéia. Despistei: esqueci qualquer coisa, duas vezes, por indústria. Finalmente, os rapazes saíram, eu trabalhei na calma.

 22/1/73 - Meus sofrimentos têm um presente: Daniel é as minhas delícias. Tanto criança maravilhoso, encanto, os seus "discursos", ora indignado, ora tímido, ele tem uma delicadeza - as fórmulas mais corteses: "Eu poderia emprestar os frascos de pintura? Você quer um copo de água" (para gouache) etc.

 25/1/73 - Ritualmente, o itinerário diário, às vezes duas vezes na manhã e na tarde. Vamos descrever o roteiro. Na rua da firma "Samburá", à esquerda, e imediatamente à direita. Sempre, o itinerário habitual. Entretanto, adiantei-me até a rua que parece circular, ou o contorno. Um baixio, uma vila de novas casas, pobres. De repente, um anfiteatro de montanhas, vasto, e as serras, sucessivamente, desdobram-se até a amplitude. A serra, próxima, é verde; depois, mais distante, azul denso; finalmente, mais longe, o azul etéreo. Que lindo!

 25/1/73 - Sol quente, eu troquei de roupa e trabalhei na pintura. Talvez trabalhei umas vinte horas. Curioso - e banal - a experiência da pintura tornou-se rapidamente, não só o trabalho, mas também a vista: descobre-se os detalhes; a percepção, uma "sabedoria" que resulta na prática. Por exemplo, as folhas, na frente da planta, e as folhas, atrás. Descobri um truque: que as folhas "internas" contrastam, em relação às folhas "externas", folhas compactas, nítidas, até mesmo a linha excessiva. Ao contrário, as folhas "internas" têm as formas evanescentes, ou tênues, esfarrapadas ou sombrias - cores escuras indistintas.

 26/1/73 - Talvez, ler baixinho é mais rápido e mais fácil para as palavras e o raciocínio, a estrutura mental e a frase, do que ler alto.

 23/2/73 - Teimosamente, Deus me protege.

26/3/73 - Coisa interessante: é mais fácil escrever do que falar, é mais fácil ler do que falar, é mais fácil escrever do que ler.

 17/4/73 - Combinamos, Elza e eu, o exercício da leitura oral: um conto de Fernando Sabino, através do nosso diálogo, sobretudo Elza, que dramatizou um pouco para animar. Depois, o livro fechado, contei a história, ajudando Elza para me lembrar. Eu acho que o exercício é muito útil. 1) Estimular a atenção, de minha parte, através do diálogo. 2) Uma história viva, coloquial, fixa as expressões de um dialogante. Ao invés de decorar uma lição na escola antiga, atenção e memória ajudam-se mutuamente.

 3/5/73 - Ontem, na PUC, reuni a classe do "Planejamento Educacional" para ensinar! Deus sabe traçar os destinos! Sensação luminosa: estava pensando que era quase impossível uma aula, ou melhor, um contato da classe, e eu estava desembaraçado. 7 mestrandos - um escol intelectual, sobretudo moral. Revelam uma humanidade tão rica, tão nobre. Privilégio. Tantos privilégios na minha doença.

 14/5/73 - Na minha família, a consciência da doença; então, enfermizado e mimado. Na terapeuta - Elza - o contato é estimulante. Não é doença, e sim o restabelecimento. No trabalho, a normalidade - é um efeito positivo, o contraste entre mim e a condição normal de trabalho.

 23/9/73 - A inteligência é triste.

 01/10/73 - Cada manhã, exercitar o falar: escondido, articular, modulado, ritmado etc. A modulação, as "ondas" do som etc.

 19/10/73 - Ivan Ribeiro para mim: o sr. melhorou muito no falar. Um enorme salto, mudanças substanciais, qualitativas etc. Eu comentei para Elza - a terapeuta - ela ficou muito feliz. Aliás, Elza me observa que eu melhorando muito. Essa conexão - "relaxamento" e fala - esse exercício, de relaxamento, propicia muito, melhora muito a fala.

 21/10/73 - A coragem de ser: os livros 1) Ernest Hemingway, O velho e o mar,2) Camus, Le mythe de Sisyphe , 3) Tillich, A coragem de ser. A minha doença, a minha coragem, a minha recuperação coragem e bravura. 10/11/73 - Terapia (pessoal). Ler alto, acompanhado pelos gestos que sublinham, pelas inflexões da voz (para variar, mas evitar a monotonia). Ler alto: a leitura ritmada, rica de inflexões, ritmos, gestos, animação etc. A leitura animada.

 18/01/74 - Eu gostaria que a família de Márcia pudesse viajar freqüentemente ao Rio: conversar, "saraus" noturnos e longos - con-versar e, sobretudo, con-viver.

 18/03/74 - Márcia pediu, ontem, para eu ler alguns poemas de Cecília Meireles (Poesias Ou Isto ou Aquilo / Inéditos) para os meus filhos. André, então, quer Márcia para ler, e não a mim. Certamente, na afasia, a leitura defeituosa etc., etc. Eu estou decepcionado, um tantinho magoado, mas eu superei a decepção e a mágoa. Ora bolas, é preciso eu ser compreensivo em relação a André, tão pequeno, tão veraz, tão autêntico.

Em vez de eu me achatear, eu insisti para ler bem, com a maneira melhor: mais atrativa, gostosa, fluente, com tons diferentes, inflexões diferentes. A minha reflexão: uma estratégia. Eu poderia ler com um certo exagero, uma certa caricatura, uma certa mímica. O meu falar defeituoso, e então, uma compensação: dramatizar, tons altos e baixos na voz, uma leitura pitoresca e (ou) cômica etc.

26/04/74 - A postura de trabalho: sentar-me diante da mesa, relaxadamente. Um relaxamento boa, que produz mais e com descanso, com repouso.

É a mesma coisa: a postura da voz. Essa técnica favorece imensamente a falar: a pessoa não se cansa: 3, 4, 5 horas sem alterar a voz, sem alterar o repouso, o descanso etc.

 6/05/74 - Criança: a "mina" da alegria; fonte fundamental, essencial, a principal alegria: criança.

 25/05/74 - Afasia. Eu tenho a impressão de que a minha palavra tem um intervalo atrasado. A emissão da voz, a emissão da palavra: a palavra comprida, eu tenho a impressão de que a palavra é mais curta. Outra coisa: a(s) palavra(s) do número: comprida etc. Agora mesmo, num artigo do Corção (O Globo,25/5/74); "O número 1650 etc. " (meu grifo): comprido.

Há um ano, mais ou menos, jogava com Márcia o gamão: cada lance, o número errado, mas, engraçado!, a "casa" certa da peça.

Eu tenho a impressão, em relação ao engano da palavra, o maior engano em relação ao número.

 7/08/74 - Terapia da palavra. É importante a técnica adequada, mas é muito mais importante o relacionamento entre o doente e a terapeuta. Relacionamento bom, alegre, lúdico, amigo. O problema fundamental é a amizade, o desvelo, o carinho, a correção, a permanência, a perseverança. A terapeuta me ajuda simultânea e integralmente o corpo e a psiquê. A amizade e a alegria ajudam a minha afasia.

 11/08/74 - Terapia. Todo dia, é preciso ler, sobretudo ler alto. Quando eu negligenciei a leitura - sobretudo leitura de voz alta - eu percebi, nitidamente, que eu regredi em relação à frase, ao arcabouço do pensamento, à construção da frase e do arcabouço e do esquema do pensamento.

 3/09/74 - Importantíssimo. Efeitos positivos da minha afasia. Mais concentração, mais placidez, mais aprofundamento. Apurar mais (a imagem: cozinhar o doce no fogão: um certo tempo determinado para coroar a gostosura, o ponto ideal: apurar bem o doce). Por exemplo: os meus textos antes da doença, então, depois da doença, eu "apurei", modifiquei, com muito dinamismo intelectual. E também a memória intelectual - e a memória cultural: com paciência, eu recolhi as idéias, as perspectivas, as referências de todas as minhas idades: um périplo completo (aliás, é um pleonasmo).

 24/09/74 - Ainda a afasia (importante). Eu preciso re-aprender a linguagem. Então, é preciso um modelo. Um modelo significa ler um texto, já que, na afasia, não tenho um modelo, já que não existe. É uma criança de seis meses, ou um ano: os pais, parente, outras pessoas, moldam a linguagem da criança.

Concretamente, eu vou ler, sistematicamente, todo dia, inclusive, sobretudo, em português. Sobretudo o modelo exemplar, texto de Drummond etc. Mas também eu vou ler em francês, pois eu estou ameaçado de esquecer ou apagar, ou sucumbir a linguagem francesa.

 11/11/74 - PUC: reatei no trabalho da PUC. Depois da conversa - conversa decisiva sobre o reatamento entre PUC e eu - eu, espontaneamente, visitei Jesus, na capelinha da PUC: a luz indireta sobre o sacrário, luz de esperança, tão clara e tão otimista, um reflexo divino. Eu adoro esse tipo de luz: luz fraca, penumbra - e tão luminosa no meu coração.

 1/1/75 - Estou lendo o livro: "O livro de Antonio".* Lendo alto. Vi a palavra Hermenegildo. É muito bom o exercício. Ler a palavra e ouvir a palavra. Então, ler alto. A prosa de Gilberto Amado é uma terapia. Expressão clara, límpida, elegante. Vocabulário rico, diversificado: palavras banais que se transformam em palavras bonitas no contexto, no período, palavras raras, às vezes difíceis, mas sempre com um "timbre" gostoso. E mais: o ritmo, a surpresa, a gostosura, a rareza, a banalidade etc... E ainda: qualquer palavra ele alterou através de sufixos com uma forma diferente. Por exemplo: perscrutantes. Essa dança, o verbo se transforma advérbio e vice-versa. E as fantásticas metáforas! O choque ou o relâmpago, por exemplo, entre o substantivo e o adjetivo: "e os úmidos horizontes dançaram sem alarde. Mistério sim, mas um rútilo equilíbrio" (meu grifo).

 

* Durmeval refere-se ao livro do escritor Antônio Carlos Villaça, em que este autor se detém longamente sobre Gilberto Amado

29/03/75 - Afasia. Dificuldade de identificar o fonema: b. Agora mesmo escrevi uma anotação: barganha, relações boas: duas palavras com dificuldade e lentidão para identificar b como fonema.

21/08/75 - Fenômeno afásico, quanto a mim. Descobri o imperador Bonaparte: Bona-parte. A afasia significa, fundamentalmente, a dissolução da linguagem. A parte positiva, construtiva, genial: dissolução da linguagem, construção de nova linguagem. Significa criatividade: nova linguagem, novo mundo, novo saber.

 6/6/76 - Afasia: percebi hoje o seguinte: assisti na televisão ao jogo entre Combinado Brasileiro e o Combinado Estrangeiro. Conversando com o meu concunhado, Miguel, fiz reações: raiva contra a burrice de jogadas etc. Aí, espontaneamente me surgiu a palavra chute. No início da partida, não consegui essa palavra. Agora brotou chute. A explicação: a combinação da imagem - parte visual e parte sonora (por exemplo na televisão) e dinâmica dos gestos, a emoção e a reação (emoção da qual brota a reação), e a palavra. Agora vou exercer, sistematicamente, esse mecanismo. Vou exercer essa disciplina. Qual é o mecanismo e a disciplina? É acionar elementos em conjunto completo, ou acionar o conjunto completo dos elementos:

          Eu preciso me habituar à televisão, todo dia, sistematicamente: programas sobretudo gostosos, interessantes, informativos: jogo de futebol, novela, noticiário.

 23/6/76 - Afasia: o afásico é mudo e solitário - não existe comunicação com as pessoas.

          O meu derrame, a minha afasia alterou substancialmente o comportamento mental e pessoal. A afasia modificou, ou alterou, a globalidade da mente, do processo mental. Exemplos, flagrantes: tenho dificuldade da palavra, isto é, a conversa, o discurso. As minhas idéias, as minhas emoções, os meus entusiasmos, a minha expansão, a minha euforia, brotam na minha mente, mas não existe canal entre a mente e o discurso, a palavra, a comunicação. Esse canal, que liga a mente e a palavra, está bloqueado, obstruído. Uma "décalage" entre a mente e a palavra. Subjetivamente, percebo emoções, entusiasmo, euforia, comunicação dentro de mim mesmo (discuto, manifesto as emoções, elucubrei conversas animadas com amigos e pessoas conhecidas, afetividade, irritação etc). Mas objetivamente, isto é, fora, do exterior, tenho muita dificuldade de comunicação: "décalage", o intercalamento entre o interior (subjetividade) o exterior (objetividade). Exemplo, flagrantes, flashs:

          1) Minha amiga Isabel (psicóloga) conversa comigo - conversa direta ou conversa telefônica. Antes do meu derrame, da minha afasia, tinha outro nível de comunicação: manifesto alegria, emoção, entusiasmo, afeto, amizade, euforia. Por quê? Porque a simultaneidade de interior e de exterior, da mente e da palavra. Significa também a espontaneidade. Só a espontaneidade provoca a emoção, afeto, entusiasmo, extroversão, euforia. A espontaneidade está sepultada pela mudez, pela afasia. Isabel me telefonou com espontaneidade: alegria, a irritação, consternação, abatimento, e eu, em desnível (nível experiência vital). O nivelamento relativo entre Isabel e eu antes da afasia. Depois da afasia, o hiato, a "décalage" no tempo, no ritmo, na modulação da voz, de emoções, de afeto, e das idéias. Conservo, na minha mente, a amizade de Isabel, mas essa amizade está submersa, não emergem as manifestações da amizade,. Isabel parlante, carinhosa, entusiasmada, e eu, mudo -uma pessoa formal, distante, cortês, sem intimidade.

          2) Eu sofro muito disso. O meu temperamento, o meu jeito, é de intimidade, de espontaneidade para os amigos (realmente, por temperamento, não tenho comunicação para todo mundo. Aliás, e parece importante: a comunicação real e eficaz é a comunicação profunda, intimidade; o diálogo real e profundo. Há uma dialética entre solidão e comunicação, ou soledade e solidariedade). Mesmo sem amigos, qualquer pessoa estranha, tenho comunicação direta: a fluência das palavras, das idéias, e das emoções. Algumas pessoas que não me conhecem dizem: você é introspectivo, calado, casmurro, solene, formal etc. Tudo errado. No coração, são dois movimentos: sístole (contração, estado de contração das fibras musculares do coração) e diástole (movimento de dilatação do coração após a fase de contração - dicionário do Aurélio ). Imagem real. Introversão e extroversão.

          3) Quando soa o meu telefone, imediatamente e espontaneamente não gosto de atender ao telefone. Inconscientemente (e agora, conscientemente: o eureka, as minhas reflexões, o meu relatório para Márcia, para o almoço de ontem): tinha certa repugnância, ou melhor, esforço de responder: afasia. Redutor: não há repugnância, já que antes da minha afasia gosto de receber telefonemas. O problema é o seguinte: Acabou a espontaneidade. Há certa inércia na física. Imagem: o avião, no chão, tem grande esforço para decolar; é preciso o piloto acionar o motor. O meu motor, a minha mente. E as hélices? A afasia. Depois da afasia, não tem hélices, asas. Eu, só motor: mente, inteligência, lucidez, criatividade. Mas é impossível - no avião e na pessoa - voar sem asas, hélices. Voar só no motor, que é muito mais pesado do que o ar. (Ar é imaginação, criação, criatividade, leveza e, ao mesmo tempo, densidade). Então, eu estou construindo asas e hélices.

          Pouco depois do meu derrame, disse para mim mesmo e para outras pessoas, sobretudo pessoas amigas: conservo a minha lucidez, e nesse caso vou deslanchar a linguagem (asas e hélices). Mistura de intuição e de informação. Como filósofo ou como pensador, percebo o mundo mental, os movimentos, os mecanismos etc. Quanto à informação específica sobre afasia, a lingüística, a linguagem cientificamente tratada, tenho pouquíssimo desse tipo de informação. A minha informação é a paixão e o sofrimento. (paixão, em latim, passio, de pati: experiência extremamente intensa que poderia se converter em sofrimento. Sofrimento é padecer: pati. Em latim é suffere: agüentar, suportar). Como sou afásico, tenho a experiência ativa, sou protagonista de minha afasia: Sujeito e, simultaneamente, Objeto. O meu sofrimento e a minha paixão é a descoberta da realidade, do conhecimento, do saber. Erudição é pouco. Os tratadistas, os especialistas não conhecem a paixão, a carne viva. Só vislumbram uma névoa... Os especialistas da afasia estão longe do próprio fenômeno afasia. Os astrônomos vêem a lua através do telescópio. Mas os astronautas têm o vivido, a vívida experiência quando tocam e caminham no chão da Lua. Mas é bastante diferente a experiência do afásico da dos astronautas da Lua. Os cientistas têm dados reais concretos (física, matemática, astronomia etc.); existe, nesses, acervo considerável de informações consistentes. Mas o ser humano? no corpo e na mente, no espírito? Edgard Morin fez um livro, cujo titulo é bastante significativo : "La nature humain: le paradigme perdu". E é verdade.

          4) Estou, incessantemente, construindo a linguagem, sobretudo uma linguagem coloquial. Paradoxo: linguagem coloquial é mais difícil? Tenho a impressão de que a linguagem conceitual - linguagem científica, filosófica, é mais fácil, pelo menos no meu caso. Vamos formular algumas hipóteses:

- a linguagem científica e filosófica já tem um padrão, um padrão conceitual. Ora, o padrão é, parcialmente, artificial. É claro que o pensamento científico e filosófico combina com o vivido, a experiência, a subjetividade, a criatividade, de um lado; e do outro, o padrão, o modelo, o artifício, a formalização;

- a minha experiência pessoal: sou, por vocação, intelectual, filósofo. Talvez essa vocação estava, está exacerbada: no meu inconsciente (no meu consciente), privilegio a inteligência e subestimo a vida. Conversa intelectual e conversa coloquial. Há certa dicotomia entre a inteligência (teoria, abstração, elaboração etc.) e a vida (a boemia, o sexo, a ligação direta entre a vida e a inteligência, o vital e o processo intelectual). Quando converso, me parece um script de ator. Aliás, estou fazendo o exercício para disciplinar a linguagem, combinando o artifício e a espontaneidade. Até agora predomina o artifício. Até agora, predomina o script; depois, Deus vai me ajudar, e eu próprio me ajudo, a predominância da espontaneidade. Esse exercício tem o propósito da comunicação real para a minha família, amigos, e todo mundo. Supressão do gap, a lacuna, o intervalo entre o vivido e o artifício.

- um trauma, uma pequena tragédia: com o derrame, troquei de identidade: outro discurso, outra fluência, outra alegria, entusiasmo, empolgamento. Troquei a identidade de mim mesmo através do discurso. No meu interior, conservo, não só a lucidez, mas a alegria, a euforia, a molecagem etc. Mas não existe ponte. Arruinou, desabou a ponte. Ponte é comunicação, linguagem, discurso.

- entretanto, não existe, realmente, certa dicotomia, certo dualismo - lucidez, de um lado, e mudismo, de outro lado. Não. A própria lucidez está machucada, vulnerada, ferida, talvez mutilada. Insisto: a afasia afeta a globalidade da mente, de seu processo e mecanismo. Tenho alguma dificuldade de entender: no lar, na conversa, no debate, nos seminários, nas reuniões, por exemplo, no IESAE e na PUC. Certa lentidão do raciocínio, ou entendo fácil e rápido para mim, mas, na verdade, entendo mal: os comparsas de reunião explicam o meu engano, o meu des-entendimento. Desentendimento não é briga, e sim, dois entendimentos diferentes e, às vezes, contraditórios.

 1/10/76 - Ah! eu sou o Sísifo! Peguei o rochedo nos meus ombros, caminhando, do sopé até o cume, passo a passo, com sofrida e corajosa caminhada. Há, para mim, uma consciência artesanal. Sou artesão: marceneiro. Palavra símbolo: machado. Machado é um instrumento para cortar pedaços. Mas o marceneiro não só corta os pedaços, mas sobretudo organiza pedaços como uma peça única: uma mesa, uma cadeira.

          É trágico para um afásico decompor pedaços e não uni-los - a não ser um hercúleo esforço cotidiano, que é o esforço de Sísifo. A frase é uma estrutura, um pedaço só: a Gestalt. A afasia destrói a estrutura. Uma picareta destroça a estrutura da língua. Eu não empunho a picareta, só o derrame o faz. Não conheço o funcionamento ou o lugar nítido em que se encaixa a picareta, o instrumento que destrói a linguagem. Não sou neurologista, ou psicólogo, ou psicolingüista, ou lingüista. Aliás, não há um lugar nítido, específico, para, com uma faca, uma guilhotina, cortar o pescoço do homem: separa-se a cabeça e o tronco, incluindo braços e pernas. Não, a afasia é um fenômeno multifacetado, um fenômeno global. Infelizmente, no Brasil - e, me parece, no mundo - não há convergência de especialistas através do método interdisciplinar.

          A minha via crucis é, exatamente, a limitação do neurologista, do lingüista, do psicolingüista quanto à afasia. Sou uma alma penada, abandonada, sem amparo de um saber real, consistente.

          Os amigos do afásico não são indiferentes, e sim, uma espécie muito específica (vá lá a tautologia) de pavor. Os médicos são indiferentes: não têm solidariedade afetiva, fraternal. É uma condição humana (v. Malraux, "A condição humana", e Camus, "O homem revoltado". Mas Camus escreveu também "La peste": a condição humana é propensão para a indiferença e a mesquinharia, mas existem homens fraternais, e destacou, exatamente, o médico - Sísifo). Mas os amigos não são indiferentes, ao contrário, é exatamente o oposto: os amigos sofrem do amigo-afásico.

 8/7/76 - Ler. Não é importante ler romance (aparentemente leve) ou poesia, ou artigo de jornal ou de revista. Não: o importante é a "articulação do sentido" (título do livro de Ladrière) com elegância; é o estilo. A linguagem densa, elegante e luminosa, em todos os gêneros da linguagem. Se eu leio filosofia (que é minha paixão), me enleio, mesmo denso o texto filosófico, mesmo cansado, mas alegre o meu espírito - desde que o pensamento elegante e articulado. Se eu leio um romance, me derruba por ser enfadonho, tedioso - quando falta elegância e luminosa densidade. Mas o romance de Bernanos é deslumbramento para mim.

 10/4/77 (Domingo de Páscoa) - Daniel para Márcia (quanto à roupa de Daniel): "É adequada?" Ótima essa palavra, essa percepção. Adequado: termo filosófico.

 10/5/77 - Estou escrevendo relativamente bem. Entretanto, percebo o desequilíbrio, o desnível entre vários atos: de pensar escritamente; de pensar oralmente e alto; de pensar oralmente e silenciosamente. O aspecto básico é a articulação: de pensar plasticamente: pintar, desenhar, e até escrever e falar (eis o paradoxo!), de pensar através das imagens conestáticas: é a televisão, o cinema. O meu empenho é fazer a sincronia: uma temporalidade só, tendencialmente, a sin-tonia, a sin-grafia, a sin-semântica, a sin-cinestática. É a síntese, a coerência, a organicidade, a síntese estrutural e histórica. Tento minimizar o desnível, ou melhor, tento o nivelamento e o equilíbrio em movimento (e não parado).

 2/09/77 - Eu distingo confiança e esperança. Esperança é uma fé, uma espera, uma possibilidade ainda não concreta. Mas a confiança é uma possibilidade real, palpável, objetiva. Confiança significa realidade.

 7/11/77 - O meu "charme" de afásico: pausadamente, pensadamente, o tom de reflexão, o tom de pensar. O ritmo da fala, é óbvio, é pausado, pois eu não tenho condições de falar com velocidade, com uma fluência verbal grande. Mas, em compensação, a densidade das idéias, o peso (= ponderação) das idéias.

          O grande ator do cinema (ou do teatro) tem um jeito diferente, singular, marcante: a impostação da voz, a pausa (e a pose sem arrogância, sem petulância, sem orgulho, sem vaidade etc.), o gesto pausado, calmo exatamente para valorizar o peso, a densidade da idéia, do gesto, da voz. O cientista brasileiro Oswaldo Cruz falava pouco: estava pesquisando, ponderando. Li, anteontem, trechos do discurso de Raquel de Queiroz na posse da Academia Brasileira de Letras. Ela analisou Oswaldo Cruz: não é um escritor, mas é um expoente. Por quê? porque tem contribuição importante, significativa, contribuição de peso, de ponderação, de reflexão.

          O importante, para o pesquisador, o professor etc., é criar, inventar, inovar, descobrir, é crescer no conhecimento, no saber que transforma o homem e a sociedade, o mundo, a história.

 11/1/78 - De repente, somos companheiros inteiros - eu e Bidu: amigos e irmãos. Estabeleceu-se a fraternidade, empaticamente, S. Francisco de Assis e eu: fraternalmente, o homem concreto e os animais, também concretos. Ontem e hoje - sobretudo estes dois dias - o Bidu se deitou na minha biblioteca: seu remanso feliz, tranqüilo, plácido.

 3/4/78 - Lendo, estou desentupindo a minha afasia. Na leitura, verifico que amplio em todos os sentidos o arsenal lingüístico e conceitual, o raciocínio fica mais veloz. Outra coisa igualmente importante: quando estou lendo tenho mais facilidade de falar, de debater, de expor oralmente.

 27/11/78 - Quando trabalho sozinho, verifico o isolamento moral e afetivo. Um minuto depois do isolamento, aparecem Márcia e meus filhos (que haviam saído do nosso apartamento), e então, um conforto afetivo, moral, uma solidariedade implícita e também explícita.

 24/5/79 - Quando estou sozinho em nosso apartamento, isolado, sobretudo preocupado (seminários, aulas, compromissos intelectuais), estou abandonado como Jó. Então, a ternura de nosso cão, Bidu: uma companhia, uma identidade partilhada pela solidão. Ele não fala, mas às vezes eu falo com Bidu. Talvez um elo sem palavras mas com simpatia, um espaço de ternura que Bidu certamente se comunica comigo: os olhos atentos, fixados em mim.

 26/07/79 - Mensagem: emissão e recepção

          1) Estou pensando comigo mesmo, enclausurado, ensimesmado, de fora para dentro, sem uma ponte para o outro. Então, não recebo a mensagem do outro, nem mesmo lendo um texto.

          2) Percebi, flagrei, agora mesmo, no almoço de hoje: Márcia conversa comigo e eu não percebo o teor da conversa, a não ser uma palavra, uma expressão perdida no contexto da conversa, na linguagem de Márcia para mim. Ora, é preciso o contexto, a Gestalt, a estrutura corrente, a estrutura fluida.

          3) Além disso, quando assisto a um filme (no cinema ou na televisão), uma peça de teatro, eu me distraio, e então, os "buracos", os "brancos", as lacunas da linguagem, do discurso. Pior ainda: participando, por exemplo, de uma reunião no IESAE ou na PUC, nos seminários e aulas, como professor.

          4) Ainda: entendo pouco, a não ser que eu mesmo explique para outra pessoa ou essa pessoa me explique. É a lentidão do meu raciocínio, um pensamento retardado no espaço do tempo - retardado cronologicamente - uma décalage entre a emissão da pessoa, conversando, um texto etc. e a minha recepção, o meu entendimento, isto é, o descompasso e a diacronia entre a emissão e a recepção, o intervalo entre a pessoa, ou o texto, e eu.

          5) É necessário, urgente, estabelecer métodos eficientes, rápidos, velozes. Por exemplo: a) sistematicamente, vou conversar com as pessoas, inclusive vou provocar a conversa, diariamente; b) todo dia vou ler, com disciplina, inclusive para acelerar a minha leitura; c) todo dia, também, vou escrever. Há uma permuta entre ler e escrever - uma fertilização mútua. Quando eu leio, ajuda o processo de escrever; e quando eu escrevo, ajuda o ato de ler.

 18/06/1980 - "O afásico perde a capacidade de comunicação". É o que afirma uma especialista, fonoaudióloga, no JB de 18/6/80.

 12/08/80 - Defeitos orgânicos: minha afasia, o problema de Portinari, o problema de Beethoven. Meu instrumento básico é a palavra. Pois bem: a afasia abateu, devastou e varreu a minha palavra, a coisa mais importante para o professor, o conferencista, o orador, o comunicador. Na televisão, o programa "Repórter" de hoje fala sobre a vida e a obra de Portinari: a coisa mais importante e básica para sua atividade é pintar; as tintas o envenenaram, e ele não conseguiu mais pintar. É a mesma coisa com Beethoven: grande, genial compositor, pianista etc., e bem novo, ficou surdo.

 30/08/80 - No Glossário do livro Phénoménologie et praxis, o verbete "Logos" distingue dois sentidos. O primeiro: "No sentido forte, o logos é a parole que dá o sentido ou que exprime a razão profunda das coisas. Mais genericamente, a palavra designa essa razão das coisas, mesmo nos casos onde nenhuma parole tenha sido recolhida." O segundo sentido: "O discurso, organizado em vista de desvendar um conjunto de verdades, expondo-as de uma maneira coerente."

          A minha experiência intensa, real, vivencial: o meu hábito de articular todas as palavras, a frase, a proposição, o discurso. Eu tenho necessidade disso. Mas, depois de meu acidente (o derrame provocador de minha afasia), percebi o sentido sem a palavra adequada, ou mesmo sem palavra - sem nenhuma palavra. Verifico isso e sofro, pois não está ainda costurado o "buraco", o "branco", a lacuna, a fratura da coerência articulada, a articulação do sentido da palavra e o conjunto das palavras.

          Percebi, de há muito tempo, a ambigüidade: reconhecer o conjunto das palavras para serem entendidas todas as palavras do conjunto; entretanto, penetro uma palavra só, e então sucumbe o sentido. Quando leio, a minha tendência é atomizar: peça por peça: preciso explorar o sentido da palavra, aprofundando, dissecando. É claro que a palavra tem um sentido, senão seria uma palavra opaca, uma coisa, uma reificação. Mas o sentido da palavra tem o sentido coativo e, mais profundamente, o impulso espontâneo, natural e necessário de completar a idéia. É tão patente essa tendência necessária, experimentada ao vivo e dolorosamente por mim, que li alguns tópicos do livro de Pascal, Pensées, e escrevi, como uma revelação "sagrada", a proposição de Pascal: "Quando se lê depressa demais ou demasiado devagar, não se entende nada". Percebi e verifiquei, explícita e nitidamente, essa verdade, essa experiência.

Férias em Riacho Doce/AL.
O livro: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.



25/1/82 -
Sobre nossas férias nesta praia. Primeiro, tempos diferentes, este e o do Rio - e também lugares diferentes, quase invertidos, como se fossem, cronologicamente, outro mundo. Segundo, rende muito mais tempo do que no Rio, trepidante, angustiante, marcado por horas certas, compromissos etc. Na praia, diferente das praias cariocas, eu rendo no lazer comprido, tranqüilamente leio o romance de Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano", e escrevo este diário com prazer, e não com obrigação