Família

 

Depois de diagnosticado o derrame cerebral e descartada a hipótese de uma cirurgia para "pinçar" o aneurisma, devido aos riscos que apresentava, restava-nos aguardar que Durmeval saísse do estado de torpor provocado pelos medicamentos para verificar em que áreas e em que extensão apareceriam lesões. Médicos, familiares e amigos contavam casos de pessoas que, após um período de entorpecimento, ressurgiam ilesas ou com pequenos comprometimentos motores, de memória ou de fala. Após duas semanas, Durmeval não apresentava mais a leve desarticulação que havíamos notado nos membros do seu lado direito. Mas não conseguia se comunicar verbalmente.

  

Afasia. O que é? Como afeta a pessoa? Quanto tempo demora? Estas perguntas, que queremos ver respondidas rápida e simplesmente, para sabermos como nos comportar, que providências tomar, que planos para o futuro fazer, não têm respostas únicas nem definitivas. Procuramos os dicionários, ouvimos os médicos e os profissionais de terapia da palavra, mas o caminho das pedras só vai se revelando na medida em que o trilhamos.

 
Uma constatação, que não sei quando fizemos, mas que se consolidou cada vez mais como fundamental no cotidiano de nossas vidas, foi: assim como não existe um ser humano igual a outro, uma pessoa afásica é diferente de todos os outros afásicos. Isto não só pela extrema diversidade com que os níveis de diminuição ou perda da capacidade de falar ou compreender as comunicações da linguagem vão se evidenciar em cada pessoa. A estrutura da personalidade, as características biológicas e psicológicas, o estilo de vida, o temperamento são determinantes na maneira da pessoa passar a conviver com a sua afasia e se refletem nos padrões de comportamento que adotará, na disposição individual para reagir aos problemas dela decorrentes e traçar a sua dinâmica de ajustamento às novas exigências de seu mundo material, psicológico e social.

  

Então, é preciso que fique bem claro: a experiência que estamos narrando é única, no sentido de centrar-se em uma determinada pessoa. Professor universitário, escritor, conferencista brilhante, acostumado desde a adolescência a uma aplicação constante e sistemática ao estudo, Durmeval gostava de ir ao cinema, ao teatro, de ouvir música, de visitar amigos, mas nada se igualava ao prazer que encontrava em ficar no seu escritório, lendo ou escrevendo. Televisão, apenas para acompanhar os noticiários e partidas de futebol, sobretudo quando o Botafogo jogava. Praia e passeios no Jardim Botânico, na Floresta da Tijuca, no Aterro do Flamengo, idas ao Maracanã eram sempre bem-vindos, principalmente para acompanhar os filhos. Mas aceitava gostosamente um fim de semana chuvoso, pretexto para voltar aos seus livros. Ao perceber a extensão e a gravidade da afasia, seu médico comentou: "Se fosse um escultor, um dentista, um padeiro, tiraria isso de letra." Não era. A palavra era seu instrumento de trabalho, e isto imprimiu características específicas à sua luta pela recuperação. No entanto, a partir do conhecimento que tivemos de outros casos de afasia, muitas coisas neste relato deverão soar como familiares a outras pessoas que passaram ou estejam passando por esse problema.

  

Disposição para a luta. Quando voltou para casa, depois de um mês internado no Hospital dos Servidores e 20 quilos mais magro, Durmeval foi direto para seu escritório. Mas ficou na soleira da porta, olhou as estantes de livros, a poltrona de leitura, os arquivos, a mesa ainda cheia com o material em que estivera trabalhando, e começou a soluçar. Talvez tenha sido este o momento em que pela primeira vez a consciência do abismo que o separava de sua vida anterior tenha concretamente se instalado nele. Não tinha o que fazer naquele ambiente, no santuário que abrigava coisas tão caras ao seu coração. Mas, horas depois, uma manifestação decisiva: com gestos e balbucios - que era como se comunicava então - Durmeval, erguendo as mãos unidas e depois agitando pernas e braços, agradecia a Deus por não ter sido também privado dos movimentos. A partir daí, assumiu com tenacidade e paciência as tarefas a que tinha de aplicar-se para recuperar a fala. Passou por muitos momentos de cansaço, desalento, mas nunca de desespero. Semanas depois, voltou a utilizar o escritório para realizar exercícios de leitura e escrita, mas os livros que o cercavam apenas lhe serviam de companhia.

 

    

Pedia que lêssemos ou acompanhássemos sua leitura de pequenos trechos do jornal, queria saber e escrever o nome de tudo - dos filhos, a quem se referia indicando a altura que tinham; dos objetos que o cercavam; de locais; dos médicos, dos amigos que o visitavam ou telefonavam. Organizamos listas com cada um desses itens, que ficaram durante meses penduradas pelas paredes da casa. Durmeval apontava aquilo sobre o que desejava alguma informação; depois passou a tentar pronunciar a palavra escrita.

(DTM, Márcia e Daniel)

Nas refeições, queria que disséssemos o nome de tudo que estava à mesa - e certa vez os meninos, então com 7 e 5 anos, divertiram-se trocando colher por faca e vendo o pai repetir aquilo até perceber a brincadeira e rir com eles.

"Homem algum é uma ilha". A afasia transforma as relações com a família, os amigos, os colegas, até com estranhos. Rompe-se a maneira habitual, às vezes automática, com que as interações aconteciam, novas formas de convivência precisam ser estabelecidas. Durmeval ressentiu-se muito quando um amigo fraterno (médico, por sinal), na primeira visita que lhe fez após o derrame, aturdido com a dificuldade de comunicação, passou a ignorá-lo, dirigindo suas perguntas e comentários aos demais presentes. Felizmente, experiências como esta foram raras. A maioria das pessoas procurava estabelecer alguma forma de contato e, dependendo da freqüência com que viam Durmeval, criava-se um relacionamento menos tenso de ambas as partes. Uns poucos demonstraram uma habilidade especial para, desde o início, lidarem com espontaneidade com uma situação que, além de abalá-los emocionalmente, era totalmente nova para eles: percebiam sua lucidez e passavam a falar mais devagar, pediam com naturalidade que a família ajudasse quando não entendiam o que Durmeval procurava expressar e permaneciam atentos e interessados em tudo quanto ele fazia, fixando seus olhos, dando-lhe o tempo que precisasse para se fazer compreender.

 Dispor do tempo necessário para construir sua comunicação, não ser infantilizado, ver-se reconhecido pelo outro enquanto pessoa integral, apesar da afasia, são ingredientes indispensáveis para que o afásico não se recolha em uma concha silenciosa e desesperançada. Falar do jeito que puder e ser estimulado a isto pelos que o cercam, aproveitando as oportunidades que surgem no dia-a-dia. Falhas ocorrem. Quantas vezes interrompemos Durmeval, completando uma frase, acelerando a conclusão de um pensamento que ele estava tentando exprimir! Às vezes ele se irritava com isso e nos dava um "chega pra lá". Era principalmente na presença de pessoas que não tinham um contato freqüente com Durmeval que tentávamos "ajudá-lo" dessa maneira. E foi uma delas que nos chamou a atenção: "Vocês já notaram como atropelam a fala dele?" Isto muitos anos depois, e quando Durmeval já havia atingido um bom nível de comunicação - que alguns consideravam excelente, outros, total: "Não se percebe mais nada! Está igualzinho ao que era!"

 Não estava. Apesar de uma recuperação realmente espantosa, seqüelas da afasia o acompanhariam pelos 15 anos que viveu após o derrame. Apesar de haver retomado a leitura de livros franceses, não falou mais nessa língua, que havia dominado perfeitamente. Dois anos depois do AVC, voltou a lecionar em cursos de pós-graduação, auxiliado por professores assistentes, onde se incumbia principalmente da organização dos programas e da orientação individual aos alunos. Falar para grande número de pessoas era muito mais complicado, pois envolvia o aspecto emocional. Para contornar essa dificuldade, apoiava-se nos textos que escrevia para cada uma dessas ocasiões. Sentia-se mais seguro lendo suas idéias. Às vezes, quando estava mais inspirado, menos tenso, conseguia "soltar-se" e voltava para casa feliz por ter vivido aqueles momentos de maior comunicação com os alunos e colegas. Um dia, acordou maravilhado: "Sonhei que estava falando!" É lógico que ele falava, mas queria dizer que havia experimentado a sensação de falar livremente, sem entraves, sem lutar para isso.

  

Devido à disposição que demonstrava e aos progressos que fazia, Durmeval muitas vezes atendeu ao pedido de amigos para "exibir-se" para outros afásicos que começavam a conviver com o problema. Visitando suas casas, Durmeval desempenhava com muita solicitude e competência o papel que lhe era destinado: instilar esperança, partilhar o que havia aprendido, mostrar a necessidade de seguir em frente. Conhecido como pessoa séria, habitualmente reservada, Durmeval possuía também um fino senso de humor, e nessas ocasiões explorava essa faceta para relatar sua experiência, aproveitando alguns casos cômicos - como a luta doméstica que travou, por quase uma hora, até conseguir que entendêssemos seu desejo de comer rabanada: apontava o pão (que por gestos cortava em fatias), apontava o leite e depois indicava sua barriga, dando-lhe um grande volume. Depois de inúmeras tentativas, estávamos prontos para desistir, mas a vontade de comer rabanada devia ter aumentado e Durmeval ainda insistia. Foi a alagoana Luzia, nossa querida ajudante e participante de todos os nossos bons e maus momentos, que decifrou a charada: "Fatia parida!!!" - que é como a rabanada é conhecida no Nordeste.

  

A importância do terapeuta da palavra. Desde o início procuramos ajudar Durmeval. A cada dia íamos aprendendo mais sobre suas limitações, as maneiras de atendê-las e de reforçar os progressos que fazia. Ele mesmo foi um grande professor sobre sua afasia; observava-se, comparava-se e nos indicava o que devíamos fazer para melhor acompanhá-lo. Mas estávamos tateando num universo desconhecido. Algumas semanas depois de voltar para casa, Durmeval começou a ser atendido por uma logopedista. Ela nos veio com excelentes recomendações e trouxe-nos o alívio de contar com um profissional preparado para lidar com um problema que mal começávamos a conhecer. Iniciou testando a extensão da afasia em diferentes áreas - expressão escrita, oral, memória, raciocínio lógico etc. - estabelecendo uma série de exercícios que faria com ele, duas vezes na semana, e que deveríamos repetir diversas vezes por dia: de recomposição do vocabulário, de repetição e memorização das palavras mais comuns, de aritmética. Durmeval cumpria os exercícios com extrema aplicação e, além deles, desenvolvia outros que atendiam à sua maneira particular de reaproximar-se da linguagem. Um deles, que achávamos especialmente pouco atraente, era o estudo das palavras a partir de seus elementos. Pegando qualquer texto, Durmeval escolhia determinadas palavras e ia copiando em um caderno: honra; piedade; desatar... O passo seguinte era procurar palavras afins, acrescentando prefixos e sufixos. Enquanto para nós isso parecia complicar a apreensão global do sentido das palavras, Durmeval considerava esse exercício muito frutífero, talvez devido aos anos de estudo de radicais gregos e latinos, nos seus tempos de seminário.

  

Os progressos feitos nesses meses eram percebidos a cada dia, comprovando o empenho de Durmeval e a competência da terapeuta. No entanto, dois incidentes desagradáveis vieram marcar essa fase. O primeiro deles, que Durmeval nem chegou a saber, ocorreu quando a terapeuta nos entregou uma pequena brochura xerocada, preparada por alguma organização norte-americana, contendo as informações que julgavam necessárias para auxiliar a família de um afásico. É espantosa a facilidade com que se produzem "manuais de instrução" ensinando a lidar com situações pessoais e a ingenuidade de se pensar que suas listas de conselhos, extensas e minuciosas, são universais e definitivas. É claro que muitas das coisas escritas naquela brochura foram úteis para ajudar-nos a entender melhor o problema que estávamos começando a viver; reconhecemos muitas das situações descritas, outras já soavam um tanto esquisitas. Mas, lá pelas tantas, uma instrução peremptória: se o afásico tivesse exercido profissão que envolvesse pleno domínio da palavra, a família deveria logo incentivá-lo a dedicar-se a outras atividades, já que ele não teria condições de retornar à vida de antes. O efeito inicial dessa informação foi arrasador, por tudo que acrescentava às inseguranças que tínhamos quanto ao futuro. Num segundo momento, resolvemos jogar a brochura no lixo: não queríamos que Durmeval pudesse chegar a lê-la, e também não desejávamos tê-la por perto, nos ameaçando com algo muito doloroso de visualizar quando à nossa frente tínhamos uma pessoa corajosamente aplicada aos seus exercícios, extremamente consciente de suas dificuldades e com tanta esperança de melhorar. Decidimos então que a ele caberia determinar a direção de sua vida. Hoje temos a certeza de que, se tivéssemos no início da terapia nos deixado influenciar por aquela nefasta instrução, procurado desestimular os esforços de Durmeval para retomar sua profissão e conseguido isto, ele não teria encontrado tantos obstáculos, mas estaria espiritualmente aleijado.

  

A partir dessa experiência, passamos a notar que a terapeuta nunca havia demonstrado maior interesse pela vida de Durmeval, não perguntava sobre as coisas que ele gostava de fazer, no que vinha empregando seu tempo fora da terapia. Durmeval professor / escritor era um dado que constava na sua ficha de registro do paciente, mas nunca mencionado - talvez porque, seguindo o "manual", achasse que quanto mais cedo ele esquecesse disso, melhor.

 

 Outra ocorrência mais grave acabou por afastá-la de nosso convívio, após quatro meses de trabalho: nos exercícios em que era solicitado a dizer, com a rapidez que pudesse, o nome de uma série de frutas, flores, capitais de estados brasileiros etc., Durmeval muitas vezes hesitava ou gaguejava. Numa das sessões, a terapeuta saiu-se com esta: "O Sr. não pode fazer isso! Assim, além de afásico, fica gago!" A reação foi imediata e explosiva. Incapaz de dizer exatamente o que pensava, e com a fala ainda mais perturbada pela emoção que o tomava, Durmeval levantou-se e bateu com o punho na mesa: "Não!!!" E repetiu diversas vezes: "Não! Não! Não!". Sorrindo amarelo, a terapeuta tentou remediar o estrago: "Acho melhor interromper agora a sessão, o Sr. está muito nervoso hoje!" Saiu, e no dia seguinte telefonamos pedindo que não voltasse.

  

A segunda terapeuta foi indicada por um amigo e, depois de uma entrevista para saber onde estava se metendo depois da experiência anterior, Durmeval acertou a continuação do trabalho, que seria feito na casa onde ela residia, no Jardim Botânico. Na saída da primeira sessão, a expressão de felicidade e o relato do que haviam feito: relaxamento, "Asa Branca" cantada com acompanhamento de violão, conversa sobre os autores que admirava, leitura de Carlos Drummond de Andrade... Elza Vieira atendeu Durmeval durante quase dois anos, e até hoje mantemos a amizade criada a partir desse envolvimento. Personalidade expansiva, voz forte, riso contagiante, Elza imprimiu à terapia, mesmo nos exercícios mais rotineiros e repetitivos, uma alegria e um entusiasmo que Durmeval ainda não havia experimentado. Principalmente, procurou criar situações e atividades que lhe davam prazer e a oportunidade de trabalhar a partir de motivações que diziam respeito à sua vida. Elza viu Durmeval como um homem inteiro e empenhou-se em ajudá-lo sempre atenta a essa inteireza.

  

E o que fazer do tempo que sobra? Interrompidas as atividades profissionais que desempenhava, as horas de terapia não preenchiam o dia de Durmeval. Por recomendação médica, caminhava duas horas: uma pela manhã e uma à tardinha ou depois de jantar. Sempre que possível, esses passeios eram feitos à beira-mar ou nos parques da cidade. Cinema, e até teatro, foram programas abolidos, porque levou muito tempo para conseguir ler as legendas de um filme ou acompanhar as falas dos atores. Ouvia música, via um pouco de televisão... sobravam horas que poderiam ser preenchidas com atividades diferentes, mas Durmeval não tinha hobbies, nunca se interessara por outra coisa senão ler e escrever. A proposta de dedicar-se ao aprendizado de um instrumento musical não o atraiu. Mas acatou a sugestão de um amigo de experimentar, através do desenho, exprimir as coisas que não podia dizer verbalmente.


As primeiras tentativas foram graficamente muito canhestras, muito pobres, e vinham acompanhadas de uma enxurrada de palavras desconexas: o desenho não conseguia substituir a outra forma de comunicação que conhecia. (Ver reprodução ao lado)


Mas aqui, como em todos os exercícios que diziam respeito à sua recuperação, Durmeval perseverava. Como os filhos estavam numa fase de explosão criativa, tínhamos em casa muito material disponível. E Durmeval saiu do lápis cera para o guache, para a aquarela, experimentou desenho cego, colagem, fez pequenos objetos em argila. Ganhou um estojo com tintas a óleo e pequenas telas, mas não chegou a utilizá-lo: preferia o guache. As pequenas estrelas e as séries de quadrados que ocupavam apenas uma pequena parte da folha foram lentamente dando lugar a figuras mais ousadas, a composições que ocupavam todo o papel e exigiam horas de trabalho; simultaneamente, ia desaparecendo a necessidade de escrever um texto relativo a cada pintura: elas passavam a comunicar por si mesmas. A que conservamos com maior carinho foi feita por Durmeval durante férias na Praia de Peruíbe / SP, e reproduz a trepadeira que seus sogros cultivavam na entrada do jardim.



Além das horas dedicadas à pintura, Durmeval lembrou-se do jogo de gamão, que havia aprendido na adolescência. A princípio, confundia-se na contagem das casas, mas a mecânica do jogo logo voltou a se estabelecer. No tabuleiro de madeira herdado do sogro, batia com estrondo o copo com os dados, numa jogada mais decisiva. Mas nada superou o prazer que sentiu quando pôde retornar à leitura, aliando sua vocação intelectual à necessidade de lazer.